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Psicanalise

Atos Falhos e a Psicopatologia da Vida Cotidiana

Por | Lembranças encobridoras, Parapraxias, Psicanalise, Psicopatologia, Transtornos de ansiedade, Transtornos psíquicos, Tratamento psicanalítico | Nenhum Comentário

No livro “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, publicado em 1901, Freud nos apresenta uma teorização sobre a importância dos fatos cotidianos que erramos “sem querer”…, que não compreendemos ou que nos surpreendem por uma aparente falta de lógica. Freud nos alerta sobre esquecimentos de palavras, lapsos de memória, lapsos de fala, de leitura e escrita, atos descuidados e erros sintomáticos, agrupando-os todos em uma categoria que denominou como psicopatologia da vida cotidiana.

Ao longo de todo o livro, como no caso do livro sobre sonhos e chistes, Freud nos apresenta um grande número de exemplos de jogos de palavras e suas extensas análises para demonstrar que o inconsciente se manifesta justamente onde aparecem os lapsos da linguagem, os esquecimentos e os atos falhos. Freud tinha uma predileção pelas parapraxias porque estas lhe permitiam estender as suas descobertas sobre o inconsciente dos pacientes com neurose, às pequenas falhas do cotidiano da vida mental normal.

Não somente as palavras esquecidas, mas aquelas que são erroneamente lembradas seguem a lei de funcionamento mental do deslocamento. O conteúdo psíquico simbólico reprimido inconsciente seria transportado de uma palavra para outra de tal forma que, ao nível da consciência, o sujeito daquele ato falho não teria acesso direto ao conteúdo inconsciente reprimido. Em grande quantidade de casos, quando um nome é esquecido e trocado por outro errôneo, este apresenta algum nível de semelhança, seja quanto à equivalência sonora, seja quanto a um significado simbólico, o que permitiu com que Freud associasse este fenômeno ao mecanismo semelhante observado nos sonhos. Freud nos revela: “Quase todas as vezes em que pude observar este fenômeno em mim mesmo, também fui capaz de explicá-lo no modo descrito acima, como se estivesse motivado pela repressão.” ( Cap. II).

No capítulo IV, Freud nos fala sobre as “lembranças encobridoras”, nome designado por ele neste estudo. Seriam aquelas lembranças que temos da infância como dados mnêmicos irrelevantes. Segundo o autor, há uma resistência que impede as lembranças realmente significativas de serem reproduzidas pela memória. Ao invés disso, as lembranças indiferentes são preservadas e podem ser reproduzidas, ao passarem pelo processo de deslocamento, em que há uma relação associativa entre um conteúdo próprio e um outro reprimido. Esta “falta de memória” teria como função proteger o psiquismo dos impactos causados por vivências mal elaboradas.

Segundo Freud, deveríamos dar mais importância ao que acontece na infância, período de estruturação do psiquismo, em que se organizam as pulsões, fase de intenso movimento psíquico e emocional, período de inúmeras transformações físicas e mentais, fenômenos sobre os quais se constroem  as noções do eu e da autoimagem. As experiências dolorosas e os eventos traumáticos da infância podem deixar marcas profundas no psiquismo, e apesar de não serem relembrados na sua integralidade, são capazes de provocar severos sintomas e psicopatologias importantes na vida adulta, pois permanecem vivos em estado de repressão inconsciente e são incompreensíveis à luz da razão e da lógica consciente.

 

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Filme “A Fortunate Man”

Por | Dinâmicas disfuncionais, Psicanalise, Psicanálise e cultura | Nenhum Comentário

“A Fortunate Man” é um drama dinamarquês dirigido por Bille August em 2018. O filme foi baseado no romance de oito volumes traduzido para o inglês “Lucky Per”. O autor do romance, Henrik Pontoppidan, escreveu a obra entre 1898 e 1904, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1917.

O drama desenvolve-se sobre o tema “ser afortunado”, “ter sorte” x “ser feliz”. Aliás, em dinamarquês, a mesma palavra “Lykke”, refere-se tanto à sorte como à felicidade. O filme nos remete também ao termo sorte como destino, transportando-nos às raízes da infância como determinantes de um destino de infortúnios pessoais, marcadas no inconsciente como lembranças encobridoras e segredos familiares, que permeiam as percepções, memórias e fantasias infantis. Em “Romances familiares” e “Lembranças encobridoras”, como entre outros textos, Freud nos apresenta sobre a importância dos primeiros anos de vida na estruturação do psiquismo e sobre as determinações inconscientes, desejo e memórias reprimidas que interagem no funcionamento mental. Numa sociedade aristocrática dinamarquesa do início do século XX, marcada por fortes tendências religiosas e político-filosóficas, o personagem principal,  Peter Sidenius, tenta desesperadamente encontrar-se com a sua sorte, seu destino,  sua subjetividade. Entre os inúmeros conflitos com a família, tenta desligar-se de suas raízes de origem cristã, mas sofre com os efeitos psíquicos que este rompimento lhe causa. Tenta quase como um mecanismo de compensação, realizar um projeto de engenharia de grande porte que iria valorizar a sua cidade natal tentando estabelecer uma enorme ligação através de canais, barragens e estações entre as regiões mais pobres e as regiões mais ricas da Dinamarca, utilizando-se do aproveitamento e transformação das energias das marés e eólica em energia elétrica. Entretanto, este projeto torna-se inviável quando se vê obrigado a submeter-se aos valores e ao poder financeiro da alta burguesia dinamarquesa. Encontra-se na fase adulta e próximo à meia idade ainda tendo que lidar com os mesmos conflitos que trazia da infância, e não dispondo de recursos psíquicos para elaborá-los, recolhe-se em uma vida solitária, circulando ao longo da vida entre o sucesso, o narcisismo e a catástrofe. Um filme lindíssimo, que nos remete a inúmeras reflexões e problematizações que permeiam as idéias dos pensadores do início do século XX. O filme nos aproxima dos traços culturais e sociais da sociedade europeia do início do século XX e às questões subjetivas que se delineiam em forma de profundos dramas associados aos conflitos familiares que são marcados pela infância. Estes que independem de uma época, mas se reatualizam nas dinâmicas intergeracionais familiares, como nos coloca a metáfora do relógio, um dos símbolos fundamentais do filme remetendo-nos à atemporalidade do inconsciente.