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Psicanálise e cultura

Reflexões sobre a Empatia

Por | Dinâmicas disfuncionais, Dinâmicas interpessoais, Empatia, Psicanálise, Psicanálise e cultura, Psicoterapia de Casal, Resiliência e autoconhecimento, Terapia familiar | Nenhum Comentário

Desde que me aproximei da tela “Niñas en el mar” (1909), do pintor espanhol Joaquim Sorolla, me percebi fazendo associações com o tema da empatia, um conceito muito divulgado que merece ser explorado pela sua amplitude e complexidade. Joaquín Sorolla conhecido como o “pintor da luz” nasceu em Valencia em 1863 e foi o pintor espanhol com maior número de obras, ao todo, 367.  Nesta tela de 1909, observamos as duas meninas de mãos dadas e podemos nos perguntar: O que está acontecendo? O que as meninas estão sentindo? Estaria a menina maior ajudando a menor a enfrentar o medo de entrar no mar?  Com uma beleza especial, esta tela nos estimula a um voo da imaginação e a interessantes reflexões sobre a empatia.

Com origem no termo grego “empatheia“, a junção da palavra “en”  com a palavra “pathos”,  significa “em paixão”, ou seja a empatia se configura como uma disposição interna de uma pessoa para se identificar com o sentimento ou situação de outra que demanda uma atitude de acolhimento e sensibilidade. Pressupõe uma comunicação de afeto, quase uma “paixão” com outra pessoa e é um dos recursos essenciais a todo relacionamento humano saudável, seja entre amigos, familiar, conjugal ou social.

Tentar compreender o outro é tão ou mais difícil que compreender a si mesmo. Somos capturados por mecanismos inconscientes que nos desencadeiam eventualmente reações que nós mesmos não compreendemos, e nos parece quase impossível compreender uma reação do outro quando esta apresenta-se aparentemente ilógica ou desproporcional. Tomemos como exemplo o medo. O medo é capaz de nos tornar irracionais, entretanto, trata-se de uma verdadeira realidade psíquica e razoavelmente difícil de ser acolhida caso o outro não vivencie o medo nas mesmas proporções em situação semelhante. Assim acontece com os estados emocionais, seja de ira, tristeza, pânico, angústia ou outros. A empatia permite nos aproximarmos do outro sem necessariamente compreendermos as razões pelas quais ele sofre.

No livro “O Poder da Empatia”: A arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo (2015), o filósofo social e historiador Roman Krznaric, nascido em  Sydney na Austrália e radicado na Inglaterra,  concentra-se no poder das ideias para transformar a sociedade.  Autor de vários livros, entre eles “Carpe Diem”, expressão que veio do latim e significa “aproveite a colheita”,  Krznaric discorre sobre a importância de termos a consciência da finitude de todas as coisas e sabermos aproveitar o momento, aproveitar o presente que nos é dado e aprendermos a aproveitar a vida na sua absoluta integralidade. O autor se dirige para a proposta de uma vida plena de conexão com o mundo, com o ambiente, com a sociedade e com o outro.

A empatia pressupõe a capacidade de se colocar no lugar do outro, de ver o mundo pelos olhos dele, de compreender porque ele reage desta ou daquela forma, porém, em relacionamentos difíceis e conturbados, a capacidade de  ser empático encontra-se significativamente reduzida. Nas terapias de casal e famílias com dinâmicas de relacionamento disfuncionais e patológicas, observo enorme dificuldade dos pacientes em resgatar ou desenvolver a empatia. Ela representa um elemento fundamental para o tratamento dos laços afetivos muito danificados e enrijecidos, em especial quando os transtornos relacionais perduram por anos a fio.  Ser empático pressupõe conhecer as próprias fragilidades e aceitá-las, ou seja, ser empático consigo mesmo pode ser um ponto de partida para tornar-se empático com o outro. Este é um trabalho que demanda tempo e disponibilidade interna para empreender em uma psicoterapia ou em um processo de análise.
Visão das neurociências
Um dos motivos para a atual popularidade do conceito é a descoberta da neurociência de que o nosso cérebro é empático, ou seja, está  programado para sentir empatia. De acordo com a neurocientista e neurocirurgiã da UNIFESP Raquel Zorzi, o fenômeno da empatia pode ser explicado também devido à ação dos neurônios-espelho. Eles participam do processo de aprendizagem e são ativados quando observamos pessoas realizando atividades que estão relacionadas às nossas ações ao sermos expostos a essas atividades. A neurocirurgiã mostra como eles funcionam em relação à empatia: “Muitos estudos têm argumentado de forma independente que o sistema de neurônios-espelho está envolvido em emoções e relações empáticas. Isso quer dizer que, quando vemos uma determinada emoção expressa por uma pessoa, ativamos esses neurônios que ‘simulam’ como se nós mesmos estivéssemos vivendo aquele sentimento”. De acordo com estudos da neurociência, a empatia envolve regiões importantes do cérebro como o córtex pré-frontal  e pode ser desenvolvida a partir de estímulos neurais desde a infância, aqueles associados ao fortalecimento de vínculos afetivos e atitudes de cooperação da criança incentivadas pelo ambiente social, familiar e cultural.
Sob o olhar psicanalítico
No campo da psicanálise, o fenômeno da empatia está relacionado ao conceito de identificação, conceito que assumiu progressivamente um valor central na obra freudiana desenvolvido em vários textos de Freud, como  “Totem e Tabu”, “Luto e Melancolia” e “Para Introdução do Narcisismo”, textos escritos no período de 1912 a 1915. Mais do que um mecanismo psicológico, o conceito da identificação para Freud constitui a operação pela qual o indivíduo humano se constitui, constrói a sua subjetividade, a sua autoimagem e os ideais de ego. A criança recebe dos pais e responsáveis os modelos de identificação com os quais vai se constituir, porém, estas identificações formam estruturas complexas, onde cada modelo, simultaneamente objeto de amor e rivalidade, vai determinar um grau de ambivalência entre amor e ódio que deverá ser elaborado ao longo do desenvolvimento da libido. Na presença de fatores favoráveis ao desenvolvimento saudável da psique, o indivíduo poderá formar um sistema relacional coerente e será capaz de lidar de forma razoavelmente harmônica com as exigências e forças conflitivas de seu psiquismo inconsciente. Frente às exigências impostas pelo ambiente social e cultural em que a pessoa vive, a empatia poderá, na melhor das hipóteses, ocupar um lugar privilegiado na organização da sua economia psíquica e colaborar no enfrentamento aos desafios das dinâmicas interpessoais, com maior equilíbrio e resiliência.

 

 

Catarina Rabello
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
contato@psicatarina.com

Filme “A Fortunate Man”

Por | Dinâmicas disfuncionais, Psicanalise, Psicanálise e cultura | Nenhum Comentário

“A Fortunate Man” é um drama dinamarquês dirigido por Bille August em 2018. O filme foi baseado no romance de oito volumes traduzido para o inglês “Lucky Per”. O autor do romance, Henrik Pontoppidan, escreveu a obra entre 1898 e 1904, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1917.

O drama desenvolve-se sobre o tema “ser afortunado”, “ter sorte” x “ser feliz”. Aliás, em dinamarquês, a mesma palavra “Lykke”, refere-se tanto à sorte como à felicidade. O filme nos remete também ao termo sorte como destino, transportando-nos às raízes da infância como determinantes de um destino de infortúnios pessoais, marcadas no inconsciente como lembranças encobridoras e segredos familiares, que permeiam as percepções, memórias e fantasias infantis. Em “Romances familiares” e “Lembranças encobridoras”, como entre outros textos, Freud nos apresenta sobre a importância dos primeiros anos de vida na estruturação do psiquismo e sobre as determinações inconscientes, desejo e memórias reprimidas que interagem no funcionamento mental. Numa sociedade aristocrática dinamarquesa do início do século XX, marcada por fortes tendências religiosas e político-filosóficas, o personagem principal,  Peter Sidenius, tenta desesperadamente encontrar-se com a sua sorte, seu destino,  sua subjetividade. Entre os inúmeros conflitos com a família, tenta desligar-se de suas raízes de origem cristã, mas sofre com os efeitos psíquicos que este rompimento lhe causa. Tenta quase como um mecanismo de compensação, realizar um projeto de engenharia de grande porte que iria valorizar a sua cidade natal tentando estabelecer uma enorme ligação através de canais, barragens e estações entre as regiões mais pobres e as regiões mais ricas da Dinamarca, utilizando-se do aproveitamento e transformação das energias das marés e eólica em energia elétrica. Entretanto, este projeto torna-se inviável quando se vê obrigado a submeter-se aos valores e ao poder financeiro da alta burguesia dinamarquesa. Encontra-se na fase adulta e próximo à meia idade ainda tendo que lidar com os mesmos conflitos que trazia da infância, e não dispondo de recursos psíquicos para elaborá-los, recolhe-se em uma vida solitária, circulando ao longo da vida entre o sucesso, o narcisismo e a catástrofe. Um filme lindíssimo, que nos remete a inúmeras reflexões e problematizações que permeiam as idéias dos pensadores do início do século XX. O filme nos aproxima dos traços culturais e sociais da sociedade europeia do início do século XX e às questões subjetivas que se delineiam em forma de profundos dramas associados aos conflitos familiares que são marcados pela infância. Estes que independem de uma época, mas se reatualizam nas dinâmicas intergeracionais familiares, como nos coloca a metáfora do relógio, um dos símbolos fundamentais do filme remetendo-nos à atemporalidade do inconsciente.

Filme “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain” (França/2001)

Por | Psicanálise e cinema, Psicanálise e cultura, Subjetividade e autoconhecimento | Nenhum Comentário

 

O filme “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain”, de Guillaume Laurant e direção de Jean-Pierre Jeunet ( França/2001) protagonizado por Audrey Tautou, é lindo, profundo e encantador. Reúne sensibilidade, humor, uma fotografia maravilhosa e uma história dramática de uma menina que tinha tudo para ser triste, mas que descobriu ao longo da vida a arte de expressar amor e  estabelecer vínculos afetivos, apesar dos sentimentos de solidão que permearam toda sua infância e adolescência. Amèlie tornou-se curiosa, imaginativa e muito empática, talvez fruto das vivências do profundo desamparo familiar, que marcou uma impossibilidade na infância de ser reconhecida como uma criança normal com necessidades de afeto, um olhar mais cuidadoso e experiências mais ricas de interação social.

Amèlie passou por todo um processo de autodescoberta de sua sensorialidade, sensualidade e sensibilidade amorosa, buscando respostas às vicissitudes da vida, o que a transformou em uma pessoa extremamente observadora, sensível, curiosa e empática a todos os dissabores daqueles de quem se aproximava, quer tivessem problemas de ordem amorosa, mental ou psicológica, quer fossem portadores de problemas e deficiências físicas, como a linda cena onde acompanha um cego ao atravessar uma rua e se permite ser os olhos dele ao caminhar, contando-lhe sobre os pormenores e sensações que o ambiente era capaz de lhe proporcionar.

O filme traz à tona uma possibilidade de circularmos entre o real e o imaginário, entre o sonho e a fantasia de forma leve, especialmente alegre, inusitada e profundamente criativa, em um roteiro muito delicadamente trabalhado e cativante de transformação pessoal, onde os personagens que carregavam as suas frustrações cristalizadas foram dissolvendo-as, cada um ao seu tempo e conforme o seu seu perfil psicológico particular, sempre com a ajuda de Amèlie.

Quando Amèlie se propõe a ajudar o outro a reconciliar-se com seu passado e sua  história, é pega de surpresa pela sua capacidade de apaixonar-se e descobre-se também no mesmo processo de reconciliação consigo mesma, com sua subjetividade e  com sua própria história. A partir daí Amèlie é capaz de abrir mão de suas defesas e sair do anonimato para poder expressar-se mais aberta e livremente em um processo lento e gradativo, onde vai delicadamente abandonando seus medos e inibições, aqueles que foram modelados por experiências  da infância em que não pode ser vista nem ouvida, onde o sentir-se amada como merecia precisou passar por uma reconstrução análoga a um quebra-cabeças de registros esparsos de pedaços de cenas, imagens e falas, que foram sendo pouco a pouco resignificados pelo impacto afetivo das novas relações que foram surgindo em sua vida. Descobre enfim que o amor pode ser compartilhado e não apenas vivido de maneira solitária, traçando uma trilha de buscas, encontros e descobertas.

 

 

Catarina Rabello
Psicóloga CRP 30103/06
Psicanalista membro efetivo do Departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Terapeuta de Casais, Famílias, Adolescentes e Adultos

Consultório São Paulo-SP
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