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Psicanalista Catarina Rabello

Luto e Reparação em “Kafka e a Boneca Viajante”

Por | Luto e Melancolia, Luto e Reparação, Psicanálise, Psicoterapia e Resiliência, Tratamento da depressão | Nenhum Comentário
O livro de Jordi Sierra i Fabra, “Kafka e a Boneca Viajante” escrito em 2006, nos remete às sensíveis maneiras de lidarmos com as perdas e as possibilidades de reparação através do amor, do afeto, da empatia e das possibilidades de criar novos caminhos para suportar a dor da perda.
O livro retrata um suposto encontro de Kafka em 1923, um ano antes de sua morte, com uma menina em um parque de Berlim. A menina encontrava-se chorando copiosamente porque havia perdido a sua boneca. Para consolá-la, Kafka teve uma idéia e pensou em uma forma de criar uma possibilidade da menina comunicar-se com a sua boneca. Kafka, então, ainda receoso se a menina iria aceitar a brincadeira, se apresentou como um carteiro de bonecas e lhe prometeu que traria as cartas escritas pela sua boneca de nome Brígida.
No dia seguinte, Kafka encontra-se com a menina e traz a sua primeira carta, com selo e envelope lacrado. Brígida havia viajado sem avisar, pois “as despedidas são muito tristes”. Estava conhecendo o mundo, sentindo-se muito feliz em poder viajar sozinha, por vários países, conhecendo culturas diferentes e lugares lindos. O escritor Kafka, agora como carteiro de bonecas e a garotinha Elsi tornaram-se amigos e empreenderam uma jornada de leituras diárias das cartas que Brígida enviara, durante três semanas seguidas, sempre lhe contando sobre as experiências novas que havia acabado de passar viajando pelo mundo.
As palavras de Brígida traziam um consolo à menina Elsi, especialmente porque se colocava como uma filha, que precisava conhecer o mundo, que sabia que iria deixar a sua mãe triste e chateada ao deixar o lar, mas estava muito feliz e muito grata por ter recebido todos os cuidados maternos de Elsi, e reconhecia o seu valor ainda mais agora, ao sentir-se capaz de ser independente e andar com as próprias pernas.
Este lindo conto de encontros marcados entre Kafka e a menina Elsi para a leitura das cartas da boneca Brígida pode nos remeter ao espaço terapêutico e potencial da análise, um espaço com data e hora marcada, um compromisso ético de entrega pessoal para a construção de um vínculo facilitador  de um processo de reparação, uma possibilidade de cura através de um processo muito sensível que, neste conto, ia permitindo aos poucos com que Elsi aceitasse a perda de sua boneca, pois passou a acreditar de certa forma que havia colaborado para o seu crescimento e sua independência. Elsi precisou deste tempo para elaborar a perda da sua tão querida boneca e, sem perceber, foi criando condições de transformar a sua dor em uma nova forma de amar. Como Kafka não poderia escrever cartas eternamente, pensou em uma forma de facilitar o desligamento entre Elsi e sua boneca Brígida.
Em sua última carta, Brígida conta a Elsi que estava muito feliz, pois havia se casado com Gustav, e que iria ter filhos com ele, teria crianças lindas como Elsi, e não poderia continuar a escrever-lhe cartas por enquanto em função de tantos afazeres. Mas retorna a dizer: “Eu não conseguiria tudo isso sem o seu amor”.
Todo o trabalho sensível e delicado de Kafka como o carteiro de bonecas, foi comprometer-se a ajudar a menina Elsi a elaborar a constatação de que ela não foi uma mãe que perdera a sua filha simplesmente por descuido, mas por uma necessidade própria de sua filha, que precisava crescer, e para isso, teve que empreender sozinha em suas viagens. Quanto dói uma perda, especialmente, se não tivemos tempo suficiente para a reparação dos danos ocorridos durante a convivência…tão difícil às vezes, entre seres humanos normais! E aquele que fica, pode eventualmente ver-se afundado em desespero e consumido por sentimentos de culpa, ansiedade, ódio de si mesmo e uma tristeza aterradora, como prenúncio de sintomas auto-destrutivos ou de uma depressão profunda.
Felizmente aparece Kafka e, com sua empatia, amadurecimento e afeto, consegue estabelecer com a garotinha um vínculo que podemos avaliar, verdadeiramente terapêutico, na condução de uma reparação indubitavelmente saudável. Ele pode escutar a tristeza profunda de sua amiguinha, pode traduzir os sentimentos de ambas as partes nas entrelinhas das cartas que escrevera, e pode acompanhar pacientemente os desdobramentos de um novo olhar de Elsi para a sua boneca e para si mesma, com a desconstrução gradativa de sua autoimagem negativa por ter acreditado que havia sido  uma mãe descuidada e negligente. Ao final, Kafka presenteia a linda Elsi com uma boneca de porcelana. Ela sabia, consciente ou inconscientemente, que iria redobrar os cuidados agora com sua nova boneca, afinal não desejava passar novamente por uma perda tão dolorida.
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Catarina Rabello
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Psicóloga Crp 30103/06
Contato: (11) 971121432
Consultório: São Paulo (SP)
R. Ministro Godói, 1301- Perdizes
São Paulo (SP)

Psicanálise, interpretação e linguagem

Por | Atendimento psicanalítico, Linguagem, Linguagem e inconsciente, Psicanálise, Psicanálise e linguagem | Nenhum Comentário

 

Somos seres de linguagem, interpretantes e interpretados, e isto ocorre continuamente, mesmo em casos em que o silêncio prepondera. Analisar e compreender os caminhos que levam às angústias e sofrimentos humanos não se torna uma tarefa fácil de desenvolver, visto a complexidade dos atalhos e tramas simbólicas que envolvem o ser desde o seu nascimento até a morte.

Freud, Lacan e Saussure percorreram uma jornada teórica distinta ao mundo da linguagem humana para nos oferecer um contorno à análise e compreensão deste fenômeno tão essencial que nos confere a qualidade de humanos. A qualidade humana de criar signos e transformá-los em linguagens e culturas tão diversas, nos caracteriza como seres diferenciados no mundo animal. Ferdinand Saussure, o linguista e filósofo suíço, falecido em 22 de fevereiro de 1913, nos apresentou a tese básica da linguagem e a relação simbólica significante/significado, propondo que a cada símbolo pertencente a uma determinada língua, haveria uma relação entre a sua apresentação sonora ou visual (significante) e a sua significação (significado). De Saussure a Chomsky, teorias linguísticas a respeito da linguagem e seus efeitos na cultura, nas sociedades e na civilização, vêm sendo desenvolvidas a passos largos.

Dando um salto da linguística à psicanálise, encontramos em Sigmund Freud, a partir do final do século XIX uma teoria que tenta explicar os mecanismos do desenvolvimento e funcionamento psíquico a partir das experiências e vivências infantis, as quais são extremamente sensíveis e dependentes dos efeitos da linguagem do adulto sobre a mente infantil e como as suas marcas permanecem vivas no inconsciente e no psiquismo adulto. Freud considera não somente a linguagem comunicada por atos, gestos, sintomas e palavras, mas principalmente, aquela que subjaz ao conteúdo manifesto da linguagem, e se manifesta como efeitos do inconsciente, associada a diferentes intensidades e direcionamentos da energia psíquica. De Freud a Lacan temos um novo grande salto teórico, que nos permite integrar a linguística de Saussure à psicanálise de Freud, sendo proposta por Lacan uma verdadeira e impactante releitura teórica. Jacques Lacan, psicanalista e teórico francês, subverte a relação significante/significado, afirmando: “O inconsciente é estruturado como linguagem”, e como tal, se depara com uma sequência infindável de significantes que se ligam uns aos outros no percurso de uma história subjetiva, com seus conteúdos em redes complexas de possibilidades interpretativas, deixando na correlação com o significado apenas rastros e pistas indeléveis, cambiantes, sutis e pertencentes a uma lógica diferenciada da lógica convencional. Lacan nos impacta em sua afirmação, subvertendo a ordem cartesiana: “Penso onde não existo e existo onde não penso”. Ou seja, agora coloca a primazia do significante sobre o significado. O significado passa a ser, a partir de Lacan, apenas um efeito simbólico da cadeia de significantes infindáveis enredados e ramificados ao longo de toda uma vida.

Temos aqui um único e brevíssimo flash do que seria este labirinto em que nos encontramos ora perdidos, ora acreditando que encontramos uma saída: Somos seres apenas resultantes dos efeitos de linguagem que nos tornaram impregnados da imagem do outro ou existe algo que nos define em nossa singularidade? Como podemos nos situar entre tudo o que nos estrutura e tudo o que nos afeta no cotidiano, desde as questões mais íntimas até aquelas que nos envolvem no todo da coletividade? No espaço entre a percepção consciente e o que nos toca no mais profundo das emoções, entre a reflexão e a ação, vivemos em um labirinto de forças e influências, tanto provenientes do mundo interno psíquico como do mundo externo ao eu, todas permeadas por complexas redes de significação e valores. O que realmente deveríamos focar como prioridade humana e onde se encontra o significado que dá consistência ao viver e à existência humana?

Há que percorrer um labirinto pessoal, instintivo, racional, emocional, consciente, inconsciente, porém, insubstituível e definitivamente, intransferível em direção à construção de uma subjetividade que fundamente os requisitos para a auto-aceitação e a autovalorização, com a consistência psíquica que as vicissitudes da vida exigem de nós, seres de linguagem.

 

 

 

Catarina Rabello
Psicóloga Crp 30103/06
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

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