Tag

Arte e psicanálise

Terapia de Casal, uma colcha de retalhos?

Por | Abordagem psicanalítica, Dinâmicas disfuncionais, Metáforas psicanalíticas, Psicanálise, Simbolização e elaboração psíquica, Terapia de Casal, Trabalho do Sonho | Nenhum Comentário

Se, em um primeiro momento, podemos observar o trabalho finalizado de uma colcha de retalhos como uma produção elaborada de arte que nos transmite uma harmonia e até uma tranquilidade ao olhar, num segundo momento, podemos nos perguntar: qual foi o segredo para chegar a este resultado tão complexo?

Sob diversos pontos de vista podemos estabelecer metáforas entre o processo psicanalítico/psicoterápico e os passos do trabalho artesanal que envolvem o costurar uma colcha de retalhos, lembrando-nos que esta é uma arte antiga passada de geração a geração e que não morre apesar de toda a facilidade que temos em adquirir uma colcha industrializada. A arte manual carrega um valor especial por excelência, pois jamais será possível nem desejável produzir uma outra peça de arte idêntica à original. A integração entre o criador e a sua arte é única,  assim como cada encontro humano jamais poderá ser reproduzido substituindo-se uma pessoa por outra, ou com a mesma pessoa em momentos diferentes de uma mesma história.

Se pudermos seguir todos os passos desta criação artesanal, iniciamos pensando nas etapas que organizam o processo de fabricação até chegarmos ao trabalho final, como a escolha dos tecidos, das formas, das cores, dos tamanhos, da disposição dos retalhos, enfim, pensamos em todos os detalhes técnicos da produção. Se quisermos transformar este momento de produção criativa em um ato terapêutico,  podemos acrescentar uma leitura simbólica deste fazer, e, com toda a possibilidade de integrar sentidos aos pequenos passos deste trabalho, agregamos vida, sentimento, desejo, emoção, força,  potencial, e tudo o que for passível de ser projetado neste rico trabalho artesanal.

A possibilidade de  agregar sentidos a um ato de criação transforma-o por si só em um veículo de elaboração de vivências tanto objetivas quanto subjetivas. Objetivo é o ato de costurar, porém, nada mais subjetivo do que poder costurar as vivências internas, aquelas que especialmente transbordam quaisquer limites se não forem bem organizadas e costuradas pelo psiquismo adulto. O ato da costura é por demais dolorido porque é precedido por inúmeros cortes, e nem sempre é fácil escolher o ângulo e a dimensão do corte… às vezes cortamos demais, às vezes de menos. Fazer parte de um processo terapêutico exige uma crença de que a dupla terapeuta/paciente, analista/analisando, seja mais habilidosa para lidar com os cortes e costuras do que empreender-se neste processo solitariamente. A agulha e a linha são os suportes fundamentais a uma costura bem feita, firme e resistente, porém, não basta o momento do planejamento, da idealização, do desejo de criar algo novo. É fundamental por a mão na massa, começar a recortar os retalhos conforme eles forem aparecendo a cada dia, e fazer algo semelhante ao que a nossa mente realiza nos sonhos noturnos, ela se propõe justamente a dar uma forma e um enredo a tantos traços de percepções irregulares e contraditórias, que não se sabe a princípio qual a origem, qual o tema, muito menos quem é o principal personagem do sonho. Entretanto, em questão de segundos, entre um insight e outro,  toda uma configuração interpretativa de um sonho pode reorganizar o seu enredo. Este é um trabalho altamente complexo de análise, de síntese e de elaboração mental, um verdadeiro trabalho artesanal de ligação ponto a ponto, delicado e único da arte de costurar. Uma analogia a esta reflexão podemos considerar com a temática do filme “Colcha de Retalhos”, no original “How to Make an American Quilt” (1995) em que as histórias de amor se entrelaçam com as variadas possibilidades de reconstrução e ressignificação com resultados inéditos, tudo em um enredo leve e marcado por histórias de encontros e desencontros amorosos, ao longo de uma composição grupal que permite um contorno bem cuidadoso de cada retalho que compõe a representação viva do todo, integrando passado e presente em uma composição ao mesmo tempo estética e simbólica.

 

Trechos do filme “How to Make an American Quilt”:

Como Ana disse,
para fazer uma colcha…
deve escolher os retalhos com cuidado.
Se escolher bem, dará destaque à obra…
se escolher mal, as cores ficam sem vida e tiram a sua beleza.

Não há regras a serem seguidas.
Deve-se seguir o instinto e ser corajosa.

 

Catarina Rabello

Psicóloga e Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
E-mail: contato@psicatarina.com

 

Fotografia: José Murilo – Colcha de Retalhos de Tecido (Paraty – RJ)

 

 

Inconsciente, um lugar secreto

Por | Abordagem psicanalítica, Inconsciente, Psicanálise | Nenhum Comentário

 

No filme “Jardim Secreto” (1993), direção de Agnieszka Holland, clássico do cinema adaptado do conto infanto-juvenil escrito por Francis Burnett em 1911, uma frase se destaca entre todas as representações e se impõe como um mote: “Se você olhar bem, verá que todo mundo é um jardim”. Toda a nossa vida é um jardim potencialmente apto a germinar e crescer, desde que lhe sejam oferecidos os cuidados e requisitos essenciais, assim como um bebê em sua condição de dependência absoluta não sobreviveria em meio a um desamparo na sua radicalidade mais concreta. No filme as imagens arquivadas do jardim secreto trazem as lembranças da balança que causou a queda e por consequência o óbito da mãe ainda grávida. Esta cena congelada transformou o jardim em um lugar inacessível, proibido e duramente abandonado. No momento em que ocorre o nascimento do filho e este coincide com a morte materna, desencadeia-se uma sequência de situações que marcam uma interrupção à vida de relações, e a criança fica à mercê do isolamento e das fantasias paternas de ameaça de morte. O menino passa então a ser “protegido” e fica resguardado em seu próprio quarto como se estivesse em uma prisão ou em uma bolha, onde até mesmo a luz do sol passa a ser interpretada como uma séria ameaça à sua saúde e à sua vida.

O abandono neste filme é retratado como uma experiência comum a vários personagens, tanto crianças como adultos, mas em especial, às crianças, que vão descobrindo pouco a pouco, formas de sobreviverem ao desamparo. Cada um deles se organiza de maneira particular, e em meio a tanta aridez afetiva, surgem quase como que em um passe de mágica, soluções ora sintomáticas, ora criativas para superar a dor do abandono, do desamparo e da solidão. A aridez afetiva na infância pode desencadear poderosas e rígidas couraças que passam a se transformar em verdadeiras estruturas defensivas para pensar e interpretar o real. Felizmente em “Jardim Secreto” também escondem-se novas possibilidades e o jardim não sucumbe apenas porque o jardineiro da família, mesmo sem autorização, continua cuidando do jardim fechado e trancado, de forma secreta. Ainda restava muita vida naquele jardim aparentemente morto, e o jardineiro sabia que deveria ser discreto para não ser visto apenas como um funcionário desobediente às ordens de seu patrão e correr o risco ser afastado de sua função, já que sabia da importância da sua atuação e vivia intensamente o seu trabalho como uma verdadeira missão.

Todos somos vítimas de experiências traumáticas em momentos precoces da vida em maior ou menor grau e, de uma forma ou outra, em torno delas criamos armaduras de proteção, ora suficientes, ora exageradas, ora congruentes, ora desajustadas. Estas soluções encontramos através de equações simbólicas inconscientes, e assim criamos  mecanismos que nos permitem viver em estado de alerta permanente. O psicanalista argentino Luis Chiozza define três níveis da vida de relação; a vida pública, a vida íntima e a vida secreta. Circulamos continuamente por estes três níveis de relação, sendo a vida pública aquela que nos retrata e nos identifica de maneira seletiva para o outro em geral. A vida íntima é aquela que nos permite sermos conhecidos mais profundamente somente por poucas pessoas com as quais temos um relacionamento íntimo, e a vida secreta envolve todo um universo de experiências, sensações e pensamentos que faz parte de um mundo secreto subjetivo, em parte consciente e em grande parte inconsciente, que não é compartilhado com ninguém.

O inconsciente habita o nosso mundo secreto com suas leis gerais da lógica do inconsciente produzindo inúmeras teorias que são comprovadas a partir de cálculos e experimentações que misturam o presente e o passado, com seus traços de memória e suas representações psíquicas, o que resulta em uma lógica com características diversas da lógica da razão. São tão complexos estes cálculos, que uma vez estabelecidos, cristalizam-se como verdades absolutas regendo linhas de pensamento e de conduta reativa a tudo o que afeta o ser, de maneira muito particular. Em nosso mundo secreto só temos acesso a uma pequena parte desses cálculos, e o que nos apresenta para nós mesmos são resultantes de tentativas de busca de um apaziguamento entre estas tantas linhas teóricas de pensamento que a mente é capaz de produzir. Habita este mundo secreto também a vida das emoções, percepções, devaneios e fantasias, um misto de imaginário e realidade, um universo onírico que, de forma semelhante ao jardineiro do “Jardim Secreto”, não aceita nem ordens nem proibições, mas se mantém alimentando e cuidando do jardim à sua maneira. A vida mental secreta desenvolve-se às vezes sem limites e por este motivo corre o risco de interferir no crescimento saudável do ser e na harmonia entre os três níveis de relações, podendo manter os incontáveis conflitos intrapsíquicos em um nível tão elevado que são capazes de produzir efeitos psicopatológicos graves, severo desgaste do equilíbrio mente/corpo e supressão da energia vital.

 

 

Catarina Rabello
Psicóloga Crp 30103/06
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Filme Lou Andreas Salomé (2016)

Por | Cultura, Gênero, Psicanálise | Nenhum Comentário

 

 

Lou Andreas Salomé, nascida na Rússia imperial em 1861 é, sem dúvida, uma das personalidades mais marcantes e polêmicas da cultura europeia e do momento político do início do século XX. A escritora  transita sobre os temas do amor, sexo e erotismo de maneira inteiramente genuína enfrentando tabus e preconceitos, colocando-se como uma mulher apaixonada pela vida e pela liberdade de ser ela mesma, rompendo totalmente com os padrões de comportamento esperados para a sua época. Teve relacionamentos com filósofos e poetas importantes, porém, perseguia o ideal do amor com liberdade, tendo sido o grande amor de Friederich Nietzsche. Em 1911 conhece Freud, faz  análise com ele e apaixona-se pela psicanálise. O filme, além de nos apresentar a sua biografia, nos permite mergulhar no caldo da cultura europeia efervescente entre o final do século XIX e começo do século XX, quando apenas algumas mulheres tinham conquistado ainda um espaço no mundo da intelectualidade masculina. Foi uma das primeiras psicanalistas mulheres e seus escritos estão mais atuais do que nunca, causam impacto nos debates filosóficos, sociológicos e psicanalíticos especialmente sobre as questões que giram em torno do feminismo, de gênero e do narcisismo.

O filme é excelente, nos coloca em contato com questões tão coletivas e tão particulares ao mesmo tempo e incita-nos a muitas reflexões. O escolhi especialmente em homenagem ao dia do psicanalista, dia 06 de maio, data de nascimento de Sigmund Freud. Um dos aspectos cenográficos  mais marcantes do filme, é a possibilidade de cenas reais relacionadas ao passado da personagem, simplesmente “brotarem” de fotografias antigas, análogo ao processo da análise, como um arquivo de traços de memória embutidos em flashes fotográficos, que vão aos poucos, se conectando, um a um, e reorganizando uma história autobiográfica, com toda a emoção que é possível ser tocada a partir destas revivescências.

 

 

Catarina Rabello
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae 

“De Corpo e Alma” (On Body and Soul – Ildiko Enyedi)

Por | Cultura | Nenhum Comentário

 

 

“De Corpo e Alma” trata-se de um filme eminentemente sensorial, capaz de produzir uma experiência de retorno à fase mais primária de cada um de nós, que é a da criança recém-nascida, aberta a todos os estímulos sensoriais do ambiente, porém, sem conseguir integrá-los num primeiro momento com os referenciais linguísticos da nossa cultura. Se por um lado, a socialização nos proporciona a convivência social e a entrada no mundo da cultura, por outro lado, somos destituídos do potencial desta sensibilidade mais genuína e exacerbada ao longo deste processo.

Este filme é assim, pura sensação, emoção e o desenrolar de uma história de amor com um desenvolvimento lento, permeado por poucas falas, um silêncio encantador, e a personagem principal, com o seu perfil autístico, nos leva a reconhecer a riqueza da construção de um laço nos detalhes de uma relação delicada, intensa e perigosa ao mesmo tempo.

A emoção conduz ao  desenvolvimento de um conteúdo profundo sobre uma relação que se inicia de forma não convencional e é tratada de uma forma extremamente cuidadosa pela diretora e escritora húngara Ildikó Enyedi, em “Corpo e Alma”. O filme ganhou o prêmio Urso de Ouro em Berlim em 2017 e foi indicado para o Oscar em 2018.

A escritora e diretora húngara traz ao público uma reflexão sobre as vicissitudes da sociedade pós-moderna quanto às dificuldades que enfrentamos para estabelecer laços de afeto, em uma sociedade que preza pela velocidade e consequente superficialidade dos encontros com o outro. O distanciamento e rigidez nas estratégias de defesas que criamos ao contato com o outro quase congelam as possibilidades de um encontro verdadeiramente afetivo. O filme nos convida, como se  pudéssemos em uma relação especular, reconhecer a nossa presença autística no mundo, a evitar feridas e a dor dos encontros e desencontros.

Trata-se de uma história de amor entre dois personagens marcados por um distanciamento inicial, personagens fechados no seu mundo interno por suas couraças, mas, que aos poucos, foram se abrindo para uma relação de profunda identificação. Através dos encontros que eram marcados inicialmente pela capacidade de sonharem os mesmos sonhos, e através desta descoberta em  sonhos, puderam romper as barreiras que os distanciavam e viver  intensamente as vicissitudes do amor, incluindo a dor do do ciúmes, da perda e a recompensa da entrega. Um verdadeiro filme de arte, amei!

 

Catarina Rabello
Psicóloga Crp 30103/06
Psicanalista membro efetivo Instituto Sedes Sapientiae

Consultório São Paulo
(11) 970434427
contato@psicatarina.com