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Psicanálise e Psicoterapia

Ser resiliente e sonhar

Por | Psicanálise e autoconhecimento, Psicanálise e resiliência, Resiliência, Resiliência e autoconhecimento, Subjetividade e autoconhecimento | Nenhum Comentário

Poema “O Sonho” (Clarice Lispector)

Sonhe com aquilo que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldade para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

 

A capacidade de ter um sonho e torná-lo realidade depende de muitos fatores, entre eles a resiliência para suportar frustrações e adversidades e a capacidade de transformá-lo em metas possíveis. Resiliência é um recurso psicológico que vem sendo estudado em duas linhas teóricas: a) Resiliência como um fator do desenvolvimento humano presente desde a infância, no estudo de crianças e grupos humanos que se adaptam a condições de vida muito adversas, e b) Resiliência como um conjunto de forças psicológicas e biológicas exigidas para atravessar com sucesso as diversas mudanças ao longo da vida.

Alguns teóricos chegam a se perguntar se a resiliência seria uma característica inata ou se seria o resultado da interação do indivíduo com o ambiente. Melillo em seu livro “Resiliência: Descobrindo as próprias fortalezas” (2005) afirma: ” A resiliência se produz em função de processos sociais e intrapsíquicos. Não se nasce resiliente, nem se adquire a resiliência “naturalmente” no desenvolvimento: depende de certas qualidades do processo interativo do sujeito com outros seres humanos, responsável pela construção do sistema psíquico humano.”
Isso explica porque o contato da criança com pessoas resilientes é primordial na construção da sua própria resiliência.

Segundo o artigo de José Alexander Ribeiro “Resiliência e seus desdobramentos” (2014), alguns atributos importantes são considerados os “pilares da resiliência”, tais como:

a) Introspecção: arte de se perguntar e se dar uma resposta honesta
b) Independência: capacidade de estabelecer limites entre si e o meio com problemas, capacidade de manter distância física e emocional sem cair no isolamento.
c) Criatividade: capacidade de criar ordem, beleza e finalidade, a partir do caos, desordem, ou escassez de recursos.
d) Empatia: capacidade de colocar-se no lugar do outro para colaborar com a reorganização de uma estrutura caótica.
e) Autoestima consistente: capacidade de não se desvitalizar frente à adversidade e acreditar em seus potenciais de enfrentamento e superação.

Vemos que o conceito de resiliência é abrangente, faz parte dos recursos psíquicos importantes para o desenvolvimento e amadurecimento psicológico, está associado a mecanismos psíquicos inconscientes de defesa e autopreservação, tem raízes na historicidade do indivíduo, e torna-se um grande aliado à saúde ao longo da vida, exigido especialmente em situações em que os eventos abalam os pilares da segurança e autoconfiança, quando os sonhos precisam ser reorientados e a esperança no futuro precisa ser recuperada e mantida.

Ref: A Resiliência e seus Desdobramentos: a Resiliência Familiar (2014) José Alexander Ribeiro Giffoni Filho – Salvador, BA, Brasil

 

 

Catarina Rabello
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae 
Psicoterapia e psicanálise

Terapia de Casal e Família
Psicóloga CRP 30103/06
Contato São Paulo : (11) 971121432
contato@psicatarina.com

Luto e Reparação em “Kafka e a Boneca Viajante”

Por | Luto e Melancolia, Luto e Reparação, Psicanálise, Psicoterapia e Resiliência, Tratamento da depressão | Nenhum Comentário
O livro de Jordi Sierra i Fabra, “Kafka e a Boneca Viajante” escrito em 2006, nos remete às sensíveis maneiras de lidarmos com as perdas e as possibilidades de reparação através do amor, do afeto, da empatia e das possibilidades de criar novos caminhos para suportar a dor da perda.
O livro retrata um suposto encontro de Kafka em 1923, um ano antes de sua morte, com uma menina em um parque de Berlim. A menina encontrava-se chorando copiosamente porque havia perdido a sua boneca. Para consolá-la, Kafka teve uma idéia e pensou em uma forma de criar uma possibilidade da menina comunicar-se com a sua boneca. Kafka, então, ainda receoso se a menina iria aceitar a brincadeira, se apresentou como um carteiro de bonecas e lhe prometeu que traria as cartas escritas pela sua boneca de nome Brígida.
No dia seguinte, Kafka encontra-se com a menina e traz a sua primeira carta, com selo e envelope lacrado. Brígida havia viajado sem avisar, pois “as despedidas são muito tristes”. Estava conhecendo o mundo, sentindo-se muito feliz em poder viajar sozinha, por vários países, conhecendo culturas diferentes e lugares lindos. O escritor Kafka, agora como carteiro de bonecas e a garotinha Elsi tornaram-se amigos e empreenderam uma jornada de leituras diárias das cartas que Brígida enviara, durante três semanas seguidas, sempre lhe contando sobre as experiências novas que havia acabado de passar viajando pelo mundo.
As palavras de Brígida traziam um consolo à menina Elsi, especialmente porque se colocava como uma filha, que precisava conhecer o mundo, que sabia que iria deixar a sua mãe triste e chateada ao deixar o lar, mas estava muito feliz e muito grata por ter recebido todos os cuidados maternos de Elsi, e reconhecia o seu valor ainda mais agora, ao sentir-se capaz de ser independente e andar com as próprias pernas.
Este lindo conto de encontros marcados entre Kafka e a menina Elsi para a leitura das cartas da boneca Brígida pode nos remeter ao espaço terapêutico e potencial da análise, um espaço com data e hora marcada, um compromisso ético de entrega pessoal para a construção de um vínculo facilitador  de um processo de reparação, uma possibilidade de cura através de um processo muito sensível que, neste conto, ia permitindo aos poucos com que Elsi aceitasse a perda de sua boneca, pois passou a acreditar de certa forma que havia colaborado para o seu crescimento e sua independência. Elsi precisou deste tempo para elaborar a perda da sua tão querida boneca e, sem perceber, foi criando condições de transformar a sua dor em uma nova forma de amar. Como Kafka não poderia escrever cartas eternamente, pensou em uma forma de facilitar o desligamento entre Elsi e sua boneca Brígida.
Em sua última carta, Brígida conta a Elsi que estava muito feliz, pois havia se casado com Gustav, e que iria ter filhos com ele, teria crianças lindas como Elsi, e não poderia continuar a escrever-lhe cartas por enquanto em função de tantos afazeres. Mas retorna a dizer: “Eu não conseguiria tudo isso sem o seu amor”.
Todo o trabalho sensível e delicado de Kafka como o carteiro de bonecas, foi comprometer-se a ajudar a menina Elsi a elaborar a constatação de que ela não foi uma mãe que perdera a sua filha simplesmente por descuido, mas por uma necessidade própria de sua filha, que precisava crescer, e para isso, teve que empreender sozinha em suas viagens. Quanto dói uma perda, especialmente, se não tivemos tempo suficiente para a reparação dos danos ocorridos durante a convivência…tão difícil às vezes, entre seres humanos normais! E aquele que fica, pode eventualmente ver-se afundado em desespero e consumido por sentimentos de culpa, ansiedade, ódio de si mesmo e uma tristeza aterradora, como prenúncio de sintomas auto-destrutivos ou de uma depressão profunda.
Felizmente aparece Kafka e, com sua empatia, amadurecimento e afeto, consegue estabelecer com a garotinha um vínculo que podemos avaliar, verdadeiramente terapêutico, na condução de uma reparação indubitavelmente saudável. Ele pode escutar a tristeza profunda de sua amiguinha, pode traduzir os sentimentos de ambas as partes nas entrelinhas das cartas que escrevera, e pode acompanhar pacientemente os desdobramentos de um novo olhar de Elsi para a sua boneca e para si mesma, com a desconstrução gradativa de sua autoimagem negativa por ter acreditado que havia sido  uma mãe descuidada e negligente. Ao final, Kafka presenteia a linda Elsi com uma boneca de porcelana. Ela sabia, consciente ou inconscientemente, que iria redobrar os cuidados agora com sua nova boneca, afinal não desejava passar novamente por uma perda tão dolorida.
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Catarina Rabello
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Psicóloga Crp 30103/06
Contato: (11) 971121432
Consultório: São Paulo (SP)
R. Ministro Godói, 1301- Perdizes
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Terapia de Casal, uma colcha de retalhos?

Por | Abordagem psicanalítica, Dinâmicas disfuncionais, Metáforas psicanalíticas, Psicanálise, Simbolização e elaboração psíquica, Terapia de Casal, Trabalho do Sonho | Nenhum Comentário

Se, em um primeiro momento, podemos observar o trabalho finalizado de uma colcha de retalhos como uma produção elaborada de arte que nos transmite uma harmonia e até uma tranquilidade ao olhar, num segundo momento, podemos nos perguntar: qual foi o segredo para chegar a este resultado tão complexo?

Sob diversos pontos de vista podemos estabelecer metáforas entre o processo psicanalítico/psicoterápico e os passos do trabalho artesanal que envolvem o costurar uma colcha de retalhos, lembrando-nos que esta é uma arte antiga passada de geração a geração e que não morre apesar de toda a facilidade que temos em adquirir uma colcha industrializada. A arte manual carrega um valor especial por excelência, pois jamais será possível nem desejável produzir uma outra peça de arte idêntica à original. A integração entre o criador e a sua arte é única,  assim como cada encontro humano jamais poderá ser reproduzido substituindo-se uma pessoa por outra, ou com a mesma pessoa em momentos diferentes de uma mesma história.

Se pudermos seguir todos os passos desta criação artesanal, iniciamos pensando nas etapas que organizam o processo de fabricação até chegarmos ao trabalho final, como a escolha dos tecidos, das formas, das cores, dos tamanhos, da disposição dos retalhos, enfim, pensamos em todos os detalhes técnicos da produção. Se quisermos transformar este momento de produção criativa em um ato terapêutico,  podemos acrescentar uma leitura simbólica deste fazer, e, com toda a possibilidade de integrar sentidos aos pequenos passos deste trabalho, agregamos vida, sentimento, desejo, emoção, força,  potencial, e tudo o que for passível de ser projetado neste rico trabalho artesanal.

A possibilidade de  agregar sentidos a um ato de criação transforma-o por si só em um veículo de elaboração de vivências tanto objetivas quanto subjetivas. Objetivo é o ato de costurar, porém, nada mais subjetivo do que poder costurar as vivências internas, aquelas que especialmente transbordam quaisquer limites se não forem bem organizadas e costuradas pelo psiquismo adulto. O ato da costura é por demais dolorido porque é precedido por inúmeros cortes, e nem sempre é fácil escolher o ângulo e a dimensão do corte… às vezes cortamos demais, às vezes de menos. Fazer parte de um processo terapêutico exige uma crença de que a dupla terapeuta/paciente, analista/analisando, seja mais habilidosa para lidar com os cortes e costuras do que empreender-se neste processo solitariamente. A agulha e a linha são os suportes fundamentais a uma costura bem feita, firme e resistente, porém, não basta o momento do planejamento, da idealização, do desejo de criar algo novo. É fundamental por a mão na massa, começar a recortar os retalhos conforme eles forem aparecendo a cada dia, e fazer algo semelhante ao que a nossa mente realiza nos sonhos noturnos, ela se propõe justamente a dar uma forma e um enredo a tantos traços de percepções irregulares e contraditórias, que não se sabe a princípio qual a origem, qual o tema, muito menos quem é o principal personagem do sonho. Entretanto, em questão de segundos, entre um insight e outro,  toda uma configuração interpretativa de um sonho pode reorganizar o seu enredo. Este é um trabalho altamente complexo de análise, de síntese e de elaboração mental, um verdadeiro trabalho artesanal de ligação ponto a ponto, delicado e único da arte de costurar. Uma analogia a esta reflexão podemos considerar com a temática do filme “Colcha de Retalhos”, no original “How to Make an American Quilt” (1995) em que as histórias de amor se entrelaçam com as variadas possibilidades de reconstrução e ressignificação com resultados inéditos, tudo em um enredo leve e marcado por histórias de encontros e desencontros amorosos, ao longo de uma composição grupal que permite um contorno bem cuidadoso de cada retalho que compõe a representação viva do todo, integrando passado e presente em uma composição ao mesmo tempo estética e simbólica.

 

Trechos do filme “How to Make an American Quilt”:

Como Ana disse,
para fazer uma colcha…
deve escolher os retalhos com cuidado.
Se escolher bem, dará destaque à obra…
se escolher mal, as cores ficam sem vida e tiram a sua beleza.

Não há regras a serem seguidas.
Deve-se seguir o instinto e ser corajosa.

 

Catarina Rabello

Psicóloga e Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
E-mail: contato@psicatarina.com

 

Fotografia: José Murilo – Colcha de Retalhos de Tecido (Paraty – RJ)