No filme “Jardim Secreto” (1993), direção de Agnieszka Holland, clássico do cinema adaptado do conto infanto-juvenil escrito por Francis Burnett em 1911, uma frase se destaca entre todas as representações e se impõe como um mote: “Se você olhar bem, verá que todo mundo é um jardim”. Toda a nossa vida é um jardim potencialmente apto a germinar e crescer, desde que lhe sejam oferecidos os cuidados e requisitos essenciais, assim como um bebê em sua condição de dependência absoluta não sobreviveria em meio a um desamparo na sua radicalidade mais concreta. No filme as imagens arquivadas do jardim secreto trazem as lembranças da balança que causou a queda e por consequência o óbito da mãe ainda grávida. Esta cena congelada transformou o jardim em um lugar inacessível, proibido e duramente abandonado. No momento em que ocorre o nascimento do filho e este coincide com a morte materna, desencadeia-se uma sequência de situações que marcam uma interrupção à vida de relações, e a criança fica à mercê do isolamento e das fantasias paternas de ameaça de morte. O menino passa então a ser “protegido” e fica resguardado em seu próprio quarto como se estivesse em uma prisão ou em uma bolha, onde até mesmo a luz do sol passa a ser interpretada como uma séria ameaça à sua saúde e à sua vida.
O abandono neste filme é retratado como uma experiência comum a vários personagens, tanto crianças como adultos, mas em especial, às crianças, que vão descobrindo pouco a pouco, formas de sobreviverem ao desamparo. Cada um deles se organiza de maneira particular, e em meio a tanta aridez afetiva, surgem quase como que em um passe de mágica, soluções ora sintomáticas, ora criativas para superar a dor do abandono, do desamparo e da solidão. A aridez afetiva na infância pode desencadear poderosas e rígidas couraças que passam a se transformar em verdadeiras estruturas defensivas para pensar e interpretar o real. Felizmente em “Jardim Secreto” também escondem-se novas possibilidades e o jardim não sucumbe apenas porque o jardineiro da família, mesmo sem autorização, continua cuidando do jardim fechado e trancado, de forma secreta. Ainda restava muita vida naquele jardim aparentemente morto, e o jardineiro sabia que deveria ser discreto para não ser visto apenas como um funcionário desobediente às ordens de seu patrão e correr o risco ser afastado de sua função, já que sabia da importância da sua atuação e vivia intensamente o seu trabalho como uma verdadeira missão.
Todos somos vítimas de experiências traumáticas em momentos precoces da vida em maior ou menor grau e, de uma forma ou outra, em torno delas criamos armaduras de proteção, ora suficientes, ora exageradas, ora congruentes, ora desajustadas. Estas soluções encontramos através de equações simbólicas inconscientes, e assim criamos mecanismos que nos permitem viver em estado de alerta permanente. O psicanalista argentino Luis Chiozza define três níveis da vida de relação; a vida pública, a vida íntima e a vida secreta. Circulamos continuamente por estes três níveis de relação, sendo a vida pública aquela que nos retrata e nos identifica de maneira seletiva para o outro em geral. A vida íntima é aquela que nos permite sermos conhecidos mais profundamente somente por poucas pessoas com as quais temos um relacionamento íntimo, e a vida secreta envolve todo um universo de experiências, sensações e pensamentos que faz parte de um mundo secreto subjetivo, em parte consciente e em grande parte inconsciente, que não é compartilhado com ninguém.
O inconsciente habita o nosso mundo secreto com suas leis gerais da lógica do inconsciente produzindo inúmeras teorias que são comprovadas a partir de cálculos e experimentações que misturam o presente e o passado, com seus traços de memória e suas representações psíquicas, o que resulta em uma lógica com características diversas da lógica da razão. São tão complexos estes cálculos, que uma vez estabelecidos, cristalizam-se como verdades absolutas regendo linhas de pensamento e de conduta reativa a tudo o que afeta o ser, de maneira muito particular. Em nosso mundo secreto só temos acesso a uma pequena parte desses cálculos, e o que nos apresenta para nós mesmos são resultantes de tentativas de busca de um apaziguamento entre estas tantas linhas teóricas de pensamento que a mente é capaz de produzir. Habita este mundo secreto também a vida das emoções, percepções, devaneios e fantasias, um misto de imaginário e realidade, um universo onírico que, de forma semelhante ao jardineiro do “Jardim Secreto”, não aceita nem ordens nem proibições, mas se mantém alimentando e cuidando do jardim à sua maneira. A vida mental secreta desenvolve-se às vezes sem limites e por este motivo corre o risco de interferir no crescimento saudável do ser e na harmonia entre os três níveis de relações, podendo manter os incontáveis conflitos intrapsíquicos em um nível tão elevado que são capazes de produzir efeitos psicopatológicos graves, severo desgaste do equilíbrio mente/corpo e supressão da energia vital.
Catarina Rabello
Psicóloga Crp 30103/06
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae