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Efeitos do Inconsciente

Por que fazer análise?

Por | abordagem psicanalítica, Autoimagem e autoestima, Psicanálise, Psicanálise e autoconhecimento | Nenhum Comentário

Como se inicia a busca de um profissional para um processo de psicanálise ou psicoterapia? O que espera-se obter concretamente, dentre os fatores objetivos e subjetivos que influenciam esta busca? O valor mais amplo de uma análise revela-se somente após um primeiro momento, quando esta busca é focada em uma resolução rápida de problemas. Entretanto, a análise abrange muito mais do que isso, amplia a possibilidade de um olhar mais detalhado à maneira como uma pessoa se organiza em relação a si mesma e ao seu equilíbrio emocional, aos seus vínculos com a vida, com seus projetos e com os outros, e em especial, como se organiza em relação à própria história e às vivências que foram marcantes e constitutivas da sua estrutura psíquica. O momento da iniciativa de busca de uma análise é comumente determinado por uma certa urgência, e costuma ocorrer quando a pessoa já esgotou outras tentativas de resolver a existência de problemas que geram profunda tristeza, insatisfação, mágoa, depressão, ansiedade ou outros sintomas, percebendo-se exausta pelas tentativas frustradas para alcançar o equilíbrio emocional tão desejado.

Estar apto a uma análise implica estar aberto a encarar de frente as próprias dificuldades e defesas frente às mesmas. Entretanto, o método psicanalítico proposto por Freud nos textos sobre a técnica da psicanálise, prevê uma aproximação gradativa às questões mais difíceis de acessar. Este processo se desenvolve ao longo do estabelecimento do vínculo terapêutico, do manejo da transferência e das resistências à análise. Freud, em seu percurso teórico/clínico foi capaz de organizar cada uma das etapas do processo psicanalítico, dando um valor especial a cada detalhe que observava de seus pacientes, ficando atento às reações ligadas à transferência, incluindo as percepções de si mesmo para articular as suas observações clínicas com as conclusões teóricas. No texto “Recordar, Repetir e Elaborar”, escrito em 1914, Freud descreve toda uma sequência de movimentos psíquicos que levam a criança a reprimir traços de vivências traumáticas e incompreensíveis para ela, que são arquivados em uma memória inconsciente, e cujos efeitos podem se manifestar muitos anos depois como sintomas e repetições, sem que necessariamente o adulto possa recordar-se destas experiências, que exercem uma grande força psíquica na produção de dores, desajustes, inibições e sintomas mentais e psicossomáticos.

O analista é o profissional capacitado a acompanhar o percurso do analisando em suas descobertas de si mesmo, utilizando a técnica psicanalítica através de uma escuta diferenciada, pontuando e trabalhando as questões e conteúdos psíquicos que surgem do inconsciente e se manifestam tanto no discurso analítico como em pequenos gestos, atos, palavras, chistes, sonhos e atos falhos. Descobrir-se dono de seu próprio destino pode ser tão doloroso quanto sentir-se aprisionado a situações aparentemente sem saída, se este processo ocorre de maneira solitária e fica sujeito às artimanhas próprias do inconsciente. Os efeitos da análise podem ser melhor avaliados pelo paciente  quando ele descobre que pode ser muito mais eficaz em suas escolhas e passa a desenvolver um domínio de si mesmo que não possuía antes da análise. Se antes o paciente ficava à mercê de suas defesas e respostas repetitivas aos conflitos intermináveis, a análise agora lhe permite ser mais criativo, aceitar-se melhor com uma autoimagem mais positiva, perceber-se melhor em seus mecanismos psíquicos e usufruir melhor de seus recursos e potencialidades.

Abandonar a dor dos sintomas também não é algo fácil de empreender, já que o paciente desenvolve um equilíbrio e uma homeostase com suas dores, seus desafetos e suas insatisfações, como se este caminho conhecido fosse a única opção a ser percorrida… de maneira simples e eterna. Primeiro, a resistência se insinua na dificuldade do paciente enxergar algumas dificuldades como verdadeiros sintomas e segundo – se as enxerga como tais, pode tentar eliminá-las via psicofarmacologia antes mesmo de se propor a enxergar as possibilidades de transformação e novos posicionamentos frente aos seus conflitos. Como Freud nos alertou em 1913: ” Nada na vida é tão caro quanto a doença”. Com esta afirmação, Freud já nos ensina sobre a dualidade das pulsões instaurada desde o início da vida no psiquismo, e que se reflete também quando um paciente busca uma análise, no conflito que se manifesta entre mergulhar ou não neste processo, atraente e desconhecido ao mesmo tempo. Seus sintomas lhe são caros no duplo sentido… produzem um desgaste imenso à sua existência, ao mesmo tempo que são protegidos com um enorme carinho…fenômeno este que pode explicar uma das grandes dificuldades da análise.

 

Os chistes e suas relações com o inconsciente em “The Shrink Next Door”

Por | Chistes, Cinema e psicanálise, Dinâmicas disfuncionais, Psicanálise | Nenhum Comentário

 

“The Shrink Next Dooor” é uma minissérie psicológica americana de oito episódios que estreou em outubro classificada como  drama e humor ácido. A história se desenvolve nos anos 80 e a temática envolve a relação entre um psiquiatra psicoterapeuta abusivo e um paciente rico que se submete a todo tipo de exploração, perda de limites e manipulação por parte de seu médico, em nome de uma promessa de cura de seus traumas infantis e da transformação de suas limitações e fragilidades emocionais em potencialidades concretas. Em uma relação absurdamente tóxica e bizarra,  Marty – o paciente de 40 anos encontra-se em uma relação terapêutica em que se identifica – pela primeira vez na vida – como sendo plenamente compreendido, aceito, querido e valorizado.

Marty envolve-se em uma rede de conflitos reatualizados de sua história em que se misturam as suas dificuldades de relacionamento, os impedimentos para sentir-se um homem capaz, as sequelas de traumas infantis, os problemas familiares, e se coloca como alvo perfeito para a prática abusiva do Dr. Isaac Herschkopf, que desde o primeiro contato da primeira consulta, inicia a construção de um vínculo terapêutico que se propõe, de maneira extremamente sedutora, intervir na autoimagem tão desvitalizada de seu paciente e promete-lhe sucesso em sua vida profissional e afetiva, extraindo de seus desejos mais primitivos de amor e aceitação, uma crença de que, a partir daquele encontro terapêutico, estaria inaugurando um processo de cura, transformação e sucesso.

Ao longo dos episódios desta minissérie o dramático torna-se cômico, mas apesar dos exageros de nonsense e absurdos da falta de ética do terapeuta, podemos traçar alguns caminhos para uma reflexão sobre o texto freudiano de 1908 “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”. Neste texto Freud descreve lindamente como o inconsciente produz um auto-engano nas percepções do sujeito e demonstra que as relações lógicas se manifestam também através dos chistes: onde falta uma relação lógica consciente, é ali que se esconde muito sutilmente uma lógica quase incipiente, quando analisamos um chiste. Freud aponta os chistes como uma espécie de revelação que é captada por processos inconscientes, onde a falta de lógica em um enunciado ou história chistosa, nos provoca uma espécie de prazer  que pode ser compartilhado sem palavras pela surpresa ou pelo riso, especialmente nas produções artísticas literárias e nas piadas do cotidiano. O personagem Marty aprisionado às suas fantasias e desejo profundo de sentir-se amado, ao invés de deparar-se com uma expansão de si mesmo como pessoa, cai numa rede em que se encolhe cada vez mais, se coloca numa relação de total dependência psicológica dos abusos de seu terapeuta, e perde completamente a sua autonomia. É quase inadmissível que ele não perceba tamanha falta de lógica na postura do terapeuta…o que estaria por detrás de tamanha cegueira?

A propósito, o termo “Shrink” evoca duas significações bem distintas. Como substantivo evoca o significado de terapeuta, psiquiatra, psicanalista, porém, utilizado em um contexto linguístico jocoso e pejorativo, segundo o Dicionário Collins. Como verbo, o termo shrink remete a toda significação associada a diminuir, reduzir, retroceder, regredir, encolher-se, encurtar-se, estreitar-se, enrugar-se, enfim, uma tendência a tornar-se menor. Este poderia ser o chiste desta história dramática. Ao passo que Marty se aprofunda na relação com o médico e torna-se mais próximo dele, mais reduz a sua capacidade crítica. Entretanto, Marty percebe-se indo em direção oposta, alcançando uma expansão nunca antes experimentada. Sem dúvida, o mecanismo de sedução do médico foi muito explorado. Porém, Freud nos alerta _ Somente quem está aberto para uma sedução é que se seduz por falsas promessas_  A força do desejo reprimido inconsciente de um sujeito psiquicamente frágil  e as múltiplas possibilidades de relação com alguém que capta com facilidade a sua carência e vulnerabilidade, constituem um terreno fértil para a construção de uma ilusão de desenvolvimento rápido e cura imediata das falhas e sintomas psicológicos em um tratamento psicoterápico. O mais dramático desta história, a meu ver, é ter sido inspirada em uma história real! Vemos que o mais absurdo e doentio das dinâmicas disfuncionais nas relações interpessoais, é factível e pode ocorrer na vida real, seja no contexto social, amoroso, familiar, seja no contexto terapêutico. Constitui-se um espaço interrelacional onde o ficcional se confunde com o real sem delinear um limite claro. O personagem Marty torna-se mais fragilizado e apresenta-se como que envolto por uma cortina, aprisionado por este outro que, por algum momento, é representado por ramos de uma erva daninha que cresce de maneira extremamente rápida, invadindo todo o espaço, como vemos em algumas imagens desta série.

O que diferencia um chiste genuíno de uma brincadeira? Segundo Freud, no chiste o raciocínio falho exalta indevidamente o valor da fantasia em detrimento da realidade; faz-se praticamente equivaler uma possibilidade a um evento real. Uma questão que o inconsciente não deveria perder de vista: O quão respeitosa e ética deveria ser uma relação que se propõe ser saudável, amorosa, de amizade, de intimidade e até mesmo terapêutica? Perguntar-se a si mesmo sobre esta questão pode ser o início de um olhar saudável para toda e qualquer relação interpessoal. O ser frágil não precisa necessariamente eliminar o seu olhar crítico frente à sedução e à fantasia de realização rápida de seu desejo mais profundo de amor. Entretanto, por questões do inconsciente, a entrada de um outro na vida de um sujeito pode desencadear a ação de mecanismos patológicos e intensificar os riscos de vulnerabilidade à violência psicológica. O propósito de expansão de si mesmo em um tratamento psicoterápico psicanalítico deve implicar primeiro que o sujeito possa deparar-se com suas próprias maneiras de enganar-se a si mesmo e a partir daí, o trabalho pode caminhar no sentido de ajudar o paciente a ampliar a sua capacidade de autonomia, tão desejada _mas tão temida ao mesmo tempo.

 

Catarina Rabello

Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae