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Ética e psicanálise

Poor Things: Reflexões sobre a ética aristotélica

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Ótimo é aquele que de si mesmo conhece todas as coisas;

Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos.

Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia,

Esse é, em verdade, uma criatura inútil.”

ARISTÓTELES em ÉTICA A NICÔMANO

 

Esta foi a provocação que me motivou a escrever uma breve reflexão a partir do filme Poor Things que concorre ao Oscar 2024 de Melhor Filme e Melhor Atriz, com a performance maravilhosa de Emma Stone na personagem de Bella Baxter, criação do médico e cientista Godwin Baxter, que fazia experiências retirando cérebros de corpos e implantando em outros seres. Assim ele cria Bella, a partir de sua morte recente, e Bella passa a referir-se ao Dr. Godwin como o pai God.  Nada mais icônico do que uma reflexão sobre a Ética de Aristóteles, entre as inúmeras questões do filme, o foco dado à ciência positivista e suas manipulações laboratoriais com seres vivos, para pensarmos o fio condutor deste filme lançado em 2023. Dirigido por Yorgos Lanthimos, cineasta produtor e roteirista grego,  com  maravilhosa fotografia, o filme apresenta muitas cenas com a perspectiva da lente Fish Eye, o que nos leva a uma forma de ver muito especial, compondo a imagem como um peixe vê o mundo, debaixo da água, como se o espaço da lente pudesse abranger todos os detalhes da cena. Em entrevista ao The Guardian, Lanthimos revela que seus filmes são sempre sobre crianças problemáticas e sobre o terrível e assustador desafio do ser humano pela luta à liberdade.

Baseado no romance Poor Things, de Alasdair Gray de 1992, Lanthimos inscreve entre o bom humor e um tanto de horror, temas político/ético/filosóficos as suas provocações a respeito da crueldade humana e suas semelhanças com a irracionalidade animal. Bella Baxter, mãe e filha de si mesma, é uma criança com o corpo de mulher, e toda a sua descoberta vai evoluindo até que ela se descobre mulher e encontra-se dotada com o poder do orgasmo e alcança a mais deliciosa felicidade. O filme eleva o tema da sexualidade ao pico máximo, e enfoca a cultura com suas regras cruéis de aprisionamento e cerceamento desta potencialidade humana, a liberdade, o prazer e a felicidade. Capaz de criar, construir e destruir na mesma proporção, a liberdade sexual é algo perigoso à civilização… Freud logo identificou os estragos da intensa repressão sexual nas somatizações de suas pacientes histéricas no final do século XIX.  Entretanto, Freud deixa-nos uma questão a ser analisada: Seria a cultura responsável pela repressão inconsciente do desejo sexual infantil, ou vice-versa? Como fazer da sexualidade humana um potencial da evolução, e retirá-la da mera condição de liberação de impulsos agressivos e destrutivos irracionais? Em nome da ciência, da religião ou da política, todos ficamos acorrentados, ao esquecermos do que nos alertavam os filósofos gregos, para a complexa questão: O que é… E para que serve a ética? Como alcançar a felicidade sem ferir o outro… Seria isto algo possível para o humano?

Poor Things faz enxergarmos, de maneira lúdica e inteligente, o drama de cada um de nós, como pobres criaturas que somos, com poucas saídas ao aprisionamento do conflito Eu e o Outro, quando nos impacta em falas como: “Aventurei-me pela vida e não encontrei nada além de açúcar e violência”. A condição do aprisionamento humano intrínseco ao processo civilizatório, para além das estruturas psíquicas inconscientes individuais, que é capaz de gerar a destruição da saúde mental e até a destruição da vida de maneira global, pode também significar um gatilho a desencadear uma luta saudável pela libertação. Nisto concordamos com Freud e os filósofos gregos; há que nos debruçarmos em muita análise e reflexão para sequer nos conduzirmos em direção a este ideal.

 Em Ética a Nicômano, Aristóteles descreve:

“A felicidade como a melhor, a mais nobre e aprazível qualidade humana”.

Das coisas a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde;

Mas a mais doce é alcançar o que amamos.”