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Metáforas psicanalíticas

Filme “O Carteiro e o Poeta” : Reflexões sobre Psicanálise

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O filme “O Carteiro e o Poeta” ( Il Postino, 1994, Italia) foi produzido a partir de uma adaptação do romance do escritor chileno Antonio Skarmeta, “Paciência Ardente” (1985). Dirigido por Michael Redford, o filme recebeu este título só na tradução em português, nos outros idiomas foi traduzido por “O Carteiro”. O co-diretor e personagem principal Massimo Troisi, era portador de uma cardiopatia grave e morreu ao final das filmagens. O Carteiro é um filme lindíssimo, com visual e trilha sonora maravilhosos, consegue transmitir com extrema sensibilidade e beleza a construção de uma relação de amizade entre o carteiro Mario e o poeta chileno Pablo Neruda, relação esta suficientemente forte para produzir uma verdadeira transformação. O filme desenvolve-se em uma pequena ilha italiana na década de 50 onde Pablo Neruda teria ficado exilado e o carteiro Mario, pessoa simples e humilde, ao lhe entregar as cartas, passa a se interessar pela capacidade do poeta em dominar as palavras e em conquistar um novo mundo de idéias e desejos mobilizados por esse contato, que é bem restrito num primeiro momento, mas, que gradativamente vai se transformando em uma relação profunda de amizade mediada pela capacidade de empatia e de sentir cada detalhe, expressar em uma forma poética e conferir valor a tudo o que é vivido pelos sentidos.

O carteiro fica muito interessado em descobrir como Neruda consegue receber tantas cartas de  mulheres apaixonadas… qual seria a sua magia? E inicia-se aí uma linda jornada compartilhada  sobre o que o poeta lhe apresenta a respeito das metáforas. O carteiro lhe pergunta: “O que é metáfora?” O poeta responde: “Metáfora é dizer as coisas de outra maneira”. Então o carteiro diz: “Quer dizer que tudo pode virar uma metáfora?” e o poeta responde: “Sim, tudo pode ser transformado em metáfora”. O carteiro, que era filho de pescador, não gostava de pescar, e ficava enjoado com as ondas do mar, sente-se despertado a se reconectar com a beleza do mar, das ondas, do vento, e, aos poucos passa a ter um novo olhar à natureza que o cerca, conduzido pela capacidade de dar um sentido às sensações, podendo acrescentar uma forma linguística e simbólica às emoções, aos sentimentos, às suas percepções, aprendendo a transformar as palavras em metáforas, passando a acreditar que ele mesmo também poderia transformar-se em um poeta e vir a conquistar  uma mulher. Quando Neruda  questiona Mario por ter utilizado um poema dele para aproximar-se da moça que ele se apaixonara, Mario responde: “A poesia é de quem precisa dela”.

De metáfora em metáfora, poderíamos nós também fazermos este exercício de metaforizar a relação entre o carteiro e o poeta para uma relação entre o analisando e seu analista? Sim, com certeza. A  relação deles não estava isenta de uma ideologia. Neruda, em seu papel político e intelectual compartilhava uma ideologia socialista-comunista, que também despertou no carteiro uma posição crítica sobre as relações abusivas de poder político que permeavam a sociedade daquela pequena ilha onde vivia. Digamos que uma relação terapêutica psicanalítica também não está isenta de uma ideologia, já que a capacidade de falar sobre si mesmo amplia a visão como um todo, e naturalmente favorece uma consciência de si mesmo em relação ao meio, permite ao paciente perceber, ter consciência e situar-se melhor em dinâmicas de relacionamentos difíceis e favorece um olhar crítico em relação à sociedade mais ampla.

A ampliação da capacidade de simbolizar e criar novas interpretações para os afetos, emoções e experiências faz com que a pessoa torne-se um agente cada vez mais ativo de seu próprio destino, sujeito de seu próprio desejo, capaz de sair de uma posição de vítima de um destino pré-determinado para uma posição ativa em direção aos seus ideais, às suas crenças e ao seu desejo. A análise é um processo terapêutico fundamentado também pela capacidade de metaforizar, selecionar, triar o que pode ser extraído das vivências pessoais, o que contribui para a elaboração psíquica e consolidação de uma subjetividade que permite lidar melhor com a própria história, seus traumas e carências. Ao acrescentar novos sentidos ao vivido, modifica-se a cadeia circular de pensamentos e sentimentos. A capacidade de incluir palavras e simbolizar as questões que emanam de uma forma inconsciente à consciência, pode gerar novos circuitos entre as emoções e sentimentos e, desta forma, libertar o ser de uma repetição contínua, queixosa e sem vida, como é comum aos pacientes portadores de sintomas psíquicos, mentais ou psicossomáticos. Libertar-se de padrões doentios e repetitivos de sentimentos, pensamentos e relacionamentos pressupõe um longo trabalho mental, e o analista, assim como o poeta, pode assumir o papel de um fio condutor a uma abertura ao mundo da consciência de si próprio em relação ao outro e ao meio, podendo situar-se melhor nesta zona fronteiriça e de difícil acesso, que se coloca como desafio de equilíbrio e subjetividade, entre o eu e o outro. O trabalho de análise das experiências dolorosas, de traumas e de sintomas mentais é árduo, porém, potencialmente rico da capacidade de ampliação do ser para uma nova possibilidade de posicionamento em relação à própria vida e fonte de transformação real.

 

 

Catarina Rabello
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Crp 30103/06

Contato: (11) 971121432
Consultório: Perdizes: R. Ministro Godoy, 1301
                         Tatuapé: R. Serra de Botucatu, 48

Terapia de Casal, uma colcha de retalhos?

Por | Abordagem psicanalítica, Dinâmicas disfuncionais, Metáforas psicanalíticas, Psicanálise, Simbolização e elaboração psíquica, Terapia de Casal, Trabalho do Sonho | Nenhum Comentário

Se, em um primeiro momento, podemos observar o trabalho finalizado de uma colcha de retalhos como uma produção elaborada de arte que nos transmite uma harmonia e até uma tranquilidade ao olhar, num segundo momento, podemos nos perguntar: qual foi o segredo para chegar a este resultado tão complexo?

Sob diversos pontos de vista podemos estabelecer metáforas entre o processo psicanalítico/psicoterápico e os passos do trabalho artesanal que envolvem o costurar uma colcha de retalhos, lembrando-nos que esta é uma arte antiga passada de geração a geração e que não morre apesar de toda a facilidade que temos em adquirir uma colcha industrializada. A arte manual carrega um valor especial por excelência, pois jamais será possível nem desejável produzir uma outra peça de arte idêntica à original. A integração entre o criador e a sua arte é única,  assim como cada encontro humano jamais poderá ser reproduzido substituindo-se uma pessoa por outra, ou com a mesma pessoa em momentos diferentes de uma mesma história.

Se pudermos seguir todos os passos desta criação artesanal, iniciamos pensando nas etapas que organizam o processo de fabricação até chegarmos ao trabalho final, como a escolha dos tecidos, das formas, das cores, dos tamanhos, da disposição dos retalhos, enfim, pensamos em todos os detalhes técnicos da produção. Se quisermos transformar este momento de produção criativa em um ato terapêutico,  podemos acrescentar uma leitura simbólica deste fazer, e, com toda a possibilidade de integrar sentidos aos pequenos passos deste trabalho, agregamos vida, sentimento, desejo, emoção, força,  potencial, e tudo o que for passível de ser projetado neste rico trabalho artesanal.

A possibilidade de  agregar sentidos a um ato de criação transforma-o por si só em um veículo de elaboração de vivências tanto objetivas quanto subjetivas. Objetivo é o ato de costurar, porém, nada mais subjetivo do que poder costurar as vivências internas, aquelas que especialmente transbordam quaisquer limites se não forem bem organizadas e costuradas pelo psiquismo adulto. O ato da costura é por demais dolorido porque é precedido por inúmeros cortes, e nem sempre é fácil escolher o ângulo e a dimensão do corte… às vezes cortamos demais, às vezes de menos. Fazer parte de um processo terapêutico exige uma crença de que a dupla terapeuta/paciente, analista/analisando, seja mais habilidosa para lidar com os cortes e costuras do que empreender-se neste processo solitariamente. A agulha e a linha são os suportes fundamentais a uma costura bem feita, firme e resistente, porém, não basta o momento do planejamento, da idealização, do desejo de criar algo novo. É fundamental por a mão na massa, começar a recortar os retalhos conforme eles forem aparecendo a cada dia, e fazer algo semelhante ao que a nossa mente realiza nos sonhos noturnos, ela se propõe justamente a dar uma forma e um enredo a tantos traços de percepções irregulares e contraditórias, que não se sabe a princípio qual a origem, qual o tema, muito menos quem é o principal personagem do sonho. Entretanto, em questão de segundos, entre um insight e outro,  toda uma configuração interpretativa de um sonho pode reorganizar o seu enredo. Este é um trabalho altamente complexo de análise, de síntese e de elaboração mental, um verdadeiro trabalho artesanal de ligação ponto a ponto, delicado e único da arte de costurar. Uma analogia a esta reflexão podemos considerar com a temática do filme “Colcha de Retalhos”, no original “How to Make an American Quilt” (1995) em que as histórias de amor se entrelaçam com as variadas possibilidades de reconstrução e ressignificação com resultados inéditos, tudo em um enredo leve e marcado por histórias de encontros e desencontros amorosos, ao longo de uma composição grupal que permite um contorno bem cuidadoso de cada retalho que compõe a representação viva do todo, integrando passado e presente em uma composição ao mesmo tempo estética e simbólica.

 

Trechos do filme “How to Make an American Quilt”:

Como Ana disse,
para fazer uma colcha…
deve escolher os retalhos com cuidado.
Se escolher bem, dará destaque à obra…
se escolher mal, as cores ficam sem vida e tiram a sua beleza.

Não há regras a serem seguidas.
Deve-se seguir o instinto e ser corajosa.

 

Catarina Rabello

Psicóloga e Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
E-mail: contato@psicatarina.com

 

Fotografia: José Murilo – Colcha de Retalhos de Tecido (Paraty – RJ)