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Psicanálise e cultura

Os chistes e suas relações com o inconsciente em “The Shrink Next Door”

Por | Chistes, Cinema e psicanálise, Dinâmicas disfuncionais, Psicanálise | Nenhum Comentário

 

“The Shrink Next Dooor” é uma minissérie psicológica americana de oito episódios que estreou em outubro classificada como  drama e humor ácido. A história se desenvolve nos anos 80 e a temática envolve a relação entre um psiquiatra psicoterapeuta abusivo e um paciente rico que se submete a todo tipo de exploração, perda de limites e manipulação por parte de seu médico, em nome de uma promessa de cura de seus traumas infantis e da transformação de suas limitações e fragilidades emocionais em potencialidades concretas. Em uma relação absurdamente tóxica e bizarra,  Marty – o paciente de 40 anos encontra-se em uma relação terapêutica em que se identifica – pela primeira vez na vida – como sendo plenamente compreendido, aceito, querido e valorizado.

Marty envolve-se em uma rede de conflitos reatualizados de sua história em que se misturam as suas dificuldades de relacionamento, os impedimentos para sentir-se um homem capaz, as sequelas de traumas infantis, os problemas familiares, e se coloca como alvo perfeito para a prática abusiva do Dr. Isaac Herschkopf, que desde o primeiro contato da primeira consulta, inicia a construção de um vínculo terapêutico que se propõe, de maneira extremamente sedutora, intervir na autoimagem tão desvitalizada de seu paciente e promete-lhe sucesso em sua vida profissional e afetiva, extraindo de seus desejos mais primitivos de amor e aceitação, uma crença de que, a partir daquele encontro terapêutico, estaria inaugurando um processo de cura, transformação e sucesso.

Ao longo dos episódios desta minissérie o dramático torna-se cômico, mas apesar dos exageros de nonsense e absurdos da falta de ética do terapeuta, podemos traçar alguns caminhos para uma reflexão sobre o texto freudiano de 1908 “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”. Neste texto Freud descreve lindamente como o inconsciente produz um auto-engano nas percepções do sujeito e demonstra que as relações lógicas se manifestam também através dos chistes: onde falta uma relação lógica consciente, é ali que se esconde muito sutilmente uma lógica quase incipiente, quando analisamos um chiste. Freud aponta os chistes como uma espécie de revelação que é captada por processos inconscientes, onde a falta de lógica em um enunciado ou história chistosa, nos provoca uma espécie de prazer  que pode ser compartilhado sem palavras pela surpresa ou pelo riso, especialmente nas produções artísticas literárias e nas piadas do cotidiano. O personagem Marty aprisionado às suas fantasias e desejo profundo de sentir-se amado, ao invés de deparar-se com uma expansão de si mesmo como pessoa, cai numa rede em que se encolhe cada vez mais, se coloca numa relação de total dependência psicológica dos abusos de seu terapeuta, e perde completamente a sua autonomia. É quase inadmissível que ele não perceba tamanha falta de lógica na postura do terapeuta…o que estaria por detrás de tamanha cegueira?

A propósito, o termo “Shrink” evoca duas significações bem distintas. Como substantivo evoca o significado de terapeuta, psiquiatra, psicanalista, porém, utilizado em um contexto linguístico jocoso e pejorativo, segundo o Dicionário Collins. Como verbo, o termo shrink remete a toda significação associada a diminuir, reduzir, retroceder, regredir, encolher-se, encurtar-se, estreitar-se, enrugar-se, enfim, uma tendência a tornar-se menor. Este poderia ser o chiste desta história dramática. Ao passo que Marty se aprofunda na relação com o médico e torna-se mais próximo dele, mais reduz a sua capacidade crítica. Entretanto, Marty percebe-se indo em direção oposta, alcançando uma expansão nunca antes experimentada. Sem dúvida, o mecanismo de sedução do médico foi muito explorado. Porém, Freud nos alerta _ Somente quem está aberto para uma sedução é que se seduz por falsas promessas_  A força do desejo reprimido inconsciente de um sujeito psiquicamente frágil  e as múltiplas possibilidades de relação com alguém que capta com facilidade a sua carência e vulnerabilidade, constituem um terreno fértil para a construção de uma ilusão de desenvolvimento rápido e cura imediata das falhas e sintomas psicológicos em um tratamento psicoterápico. O mais dramático desta história, a meu ver, é ter sido inspirada em uma história real! Vemos que o mais absurdo e doentio das dinâmicas disfuncionais nas relações interpessoais, é factível e pode ocorrer na vida real, seja no contexto social, amoroso, familiar, seja no contexto terapêutico. Constitui-se um espaço interrelacional onde o ficcional se confunde com o real sem delinear um limite claro. O personagem Marty torna-se mais fragilizado e apresenta-se como que envolto por uma cortina, aprisionado por este outro que, por algum momento, é representado por ramos de uma erva daninha que cresce de maneira extremamente rápida, invadindo todo o espaço, como vemos em algumas imagens desta série.

O que diferencia um chiste genuíno de uma brincadeira? Segundo Freud, no chiste o raciocínio falho exalta indevidamente o valor da fantasia em detrimento da realidade; faz-se praticamente equivaler uma possibilidade a um evento real. Uma questão que o inconsciente não deveria perder de vista: O quão respeitosa e ética deveria ser uma relação que se propõe ser saudável, amorosa, de amizade, de intimidade e até mesmo terapêutica? Perguntar-se a si mesmo sobre esta questão pode ser o início de um olhar saudável para toda e qualquer relação interpessoal. O ser frágil não precisa necessariamente eliminar o seu olhar crítico frente à sedução e à fantasia de realização rápida de seu desejo mais profundo de amor. Entretanto, por questões do inconsciente, a entrada de um outro na vida de um sujeito pode desencadear a ação de mecanismos patológicos e intensificar os riscos de vulnerabilidade à violência psicológica. O propósito de expansão de si mesmo em um tratamento psicoterápico psicanalítico deve implicar primeiro que o sujeito possa deparar-se com suas próprias maneiras de enganar-se a si mesmo e a partir daí, o trabalho pode caminhar no sentido de ajudar o paciente a ampliar a sua capacidade de autonomia, tão desejada _mas tão temida ao mesmo tempo.

 

Catarina Rabello

Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Profissionais da Saúde e Pandemia do COVID-19

Por | Dinâmicas disfuncionais de trabalho, Resiliência, Saúde mental e Pandemia, Saúde pública, Simbolização e elaboração psíquica, Subjetividade e relações de trabalho, Trabalho do Sonho | Nenhum Comentário

 

Ao acordar de um sonho de horror, me vi mobilizada a escrever sobre o estresse traumático que milhares de profissionais da saúde vêm  sofrendo, sendo submetidos a cenas reais e impactados por terrores que a própria mente se esforça por metabolizar, e diante do insucesso frente à magnitude da pandemia, muito semelhante aos fronts de guerra, alguns gritam por socorro. Se alguns estudiosos hoje falam sobre a “Psicologização da Pandemia”, provavelmente nunca tiveram a oportunidade de atuar numa linha de frente tão drástica como as equipes de saúde da rede pública nacional que atendem as vítimas da pandemia do COVID- 19. O sonho se desenvolveu em Ushuaia, no trem chamado “trem do fim do mundo”. Tinha ido para lá participar de uma jornada científica, e toda minha história se desenvolve naquela estação de trem. Passados alguns dias, acordo de sobressalto, vejo pessoas correndo desesperadas, não consigo me situar no tempo nem no espaço, apenas uma nuvem cinza e um cheiro horrível de fumaça, meus olhos não conseguem focar quase nada. Eu havia dormido agarrada a algumas apostilas do curso, e quando consegui focar alguma imagem, vi uma amiga correndo de calça preta, era de veludo, ela entrava correndo em outro vagão como todas as outras pessoas, alucinadas, umas por cima das outras, conquistando um espaço em direção à frágil possibilidade de sobrevivência. Fui atrás dela querendo seguir alguma referência, mas não cheguei a tempo e o trem partiu. Olhei em volta, me senti completamente só, não sabia o que fazer, estava impedida de voltar ao meu vagão, tudo cheirava a queimado, tudo preto, e a única coisa que eu tinha como apoio eram aquelas apostilas com as quais havia dormido abraçada. Eu pensava, pensava, mas não encontrava uma solução. Havia perdido o trem que salvara inúmeras pessoas, perdi minhas malas, perdi minha bolsa, sem dinheiro, sem roupas e sem documentos, o que eu faria com todo aquele desamparo? Ir até um bar e pedir por uma comida…humilhação jamais imaginada. Ficar sem perspectiva, sem ter o que fazer, não saberia como voltar pra casa, não saberia como continuar esta jornada, onde comer, onde dormir, era um desamparo absoluto, absolutamente só em terra estranha…impossível metabolizar tudo isso. Felizmente acordei e novamente tive dificuldade de me situar, afinal eu tinha vivido aquelas cenas de maneira tão realista, que demorei pra acreditar que não era real, apenas uma produção alucinatória da minha mente.

Infelizmente cenas reais do horror da pandemia têm impactado milhares de profissionais da saúde. Participar das equipes de atendimento psicológico voluntário a estes profissionais tem me ensinado muito, não somente quanto aos efeitos psíquicos dos traumas vividos, mas sobre a importância do grau de resiliência que é requisitado de cada um que se desdobra para dar continuidade a um ofício quase humanamente impossível, quando em contato com os horrores da falta de recursos mínimos de proteção à vida, vivências de desrespeito e uma violência velada em inúmeras unidades da rede de saúde pública ao longo das linhas que cortam o nosso país. Retomadas da economia escondem o impacto da verdadeira tragédia. Não fosse uma tragédia econômica e social, somos obrigados a conviver com uma inércia de lideranças que pouco se importam com a violência imposta à rede de saúde, mais especificamente a saúde pública. Por mais maquiada que possa parecer a realidade da saúde nacional, falta muito ainda à luz dos direitos humanos, onde no microcosmos das equipes de saúde, o profissional fica dividido entre a decisão de continuar ou abandonar, desde o seu posto de trabalho, sua carreira colocada em risco, até a tarefa de decidir sobre quem morre e quem vive.  Onde chegamos? Com os recursos mentais esgotados dos profissionais da saúde da linha de frente desta batalha à sobrevivência, torna-se coletivamente invisível o efeito das consequências mentais e psíquicas diante das estatísticas diárias da distribuição da pandemia pelo planeta, aproximando-se hoje de sete milhões de vítimas. Entretanto, as vítimas sobreviventes do desamparo absoluto atinge cifras também inimagináveis. Fazemos parte de uma legião de pessoas que teriam muito a falar coletivamente, mas, diante de tantas ameaças, os profissionais da saúde não têm outra escolha, a não ser reservar um pouco da sua verdade ao amparo do sigilo do atendimento psicológico. Há um silêncio perturbador, que se esconde por detrás dos sintomas de depressão, ansiedade, pânico e estresse pós-traumático, que indica ao mesmo tempo, o quanto a natureza humana é capaz de se reorganizar diante de tanto horror. A capacidade de sobrevivência e saúde mental exigem estarem intimamente  associadas à capacidade de resiliência ante o enfrentamento dos medos que invadem o dia-a-dia dos profissionais da saúde, necessitando de acolhimento, escuta e atendimento adequados.

Talvez nós, os psicólogos, além de sermos os vetores da escuta das dores traumáticas isoladas e solitárias, possamos representar  um dos pequenos, mas não menos importantes, vetores de um resgate da saúde social e rompimento do silêncio que se impõe em meio a urgências e emergências, aos profissionais que necessitam gerir situações inusitadas, precisam expor suas angústias e requerem uma possibilidade de questionarem sobre a ética quanto à escassez de recursos básicos de proteção nos serviços de saúde. Colocar-se hoje em uma frente de trabalho na saúde contra a pandemia do COVID-19 torna-se um desafio tão desorganizador como passar por uma tormenta no meio do oceano. No relato do sonho, mistura-se o onírico a uma realidade muito próxima e semelhante à perda de referências a que o trauma da pandemia expõe as equipes de saúde. Transcorrido em Ushuaia, a cidade mais austral do planeta, sabe-se que o frio, a neve e a dureza de suas montanhas não impedem que a vida continue, que a belíssima imagem de suas paisagens se mantenha impressionante, e que a natureza, lutando contra um desastre ambiental,  venha um dia a se recompor, mesmo sendo obrigada a conviver com os efeitos trágicos da introdução dos castores canadenses na região, causando um desequilíbrio ecológico sem precedentes e destruindo suas matas… Mais um desequilíbrio por erro humano gerando trágicos efeitos. Assim vemos os profissionais da saúde, tentando lutar por uma sobrevivência de seus semelhantes, de si mesmos e das próprias condições essenciais à saúde, desenvolvendo toda a sorte de defesas para lidarem com o desamparo da perda de referências e solidão absolutas.

 

 

Catarina Rabello

Psicóloga CRP 30103/06
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Contato: São Paulo (SP) Brasil  Whatssapp (11) 971121432

Filme “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain” (França/2001)

Por | Psicanálise e cinema, Psicanálise e cultura, Subjetividade e autoconhecimento | Nenhum Comentário

 

O filme “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain”, de Guillaume Laurant e direção de Jean-Pierre Jeunet ( França/2001) protagonizado por Audrey Tautou, é lindo, profundo e encantador. Reúne sensibilidade, humor, uma fotografia maravilhosa e uma história dramática de uma menina que tinha tudo para ser triste, mas que descobriu ao longo da vida a arte de expressar amor e  estabelecer vínculos afetivos, apesar dos sentimentos de solidão que permearam toda sua infância e adolescência. Amèlie tornou-se curiosa, imaginativa e muito empática, talvez fruto das vivências do profundo desamparo familiar, que marcou uma impossibilidade na infância de ser reconhecida como uma criança normal com necessidades de afeto, um olhar mais cuidadoso e experiências mais ricas de interação social.

Amèlie passou por todo um processo de autodescoberta de sua sensorialidade, sensualidade e sensibilidade amorosa, buscando respostas às vicissitudes da vida, o que a transformou em uma pessoa extremamente observadora, sensível, curiosa e empática a todos os dissabores daqueles de quem se aproximava, quer tivessem problemas de ordem amorosa, mental ou psicológica, quer fossem portadores de problemas e deficiências físicas, como a linda cena onde acompanha um cego ao atravessar uma rua e se permite ser os olhos dele ao caminhar, contando-lhe sobre os pormenores e sensações que o ambiente era capaz de lhe proporcionar.

O filme traz à tona uma possibilidade de circularmos entre o real e o imaginário, entre o sonho e a fantasia de forma leve, especialmente alegre, inusitada e profundamente criativa, em um roteiro muito delicadamente trabalhado e cativante de transformação pessoal, onde os personagens que carregavam as suas frustrações cristalizadas foram dissolvendo-as, cada um ao seu tempo e conforme o seu seu perfil psicológico particular, sempre com a ajuda de Amèlie.

Quando Amèlie se propõe a ajudar o outro a reconciliar-se com seu passado e sua  história, é pega de surpresa pela sua capacidade de apaixonar-se e descobre-se também no mesmo processo de reconciliação consigo mesma, com sua subjetividade e  com sua própria história. A partir daí Amèlie é capaz de abrir mão de suas defesas e sair do anonimato para poder expressar-se mais aberta e livremente em um processo lento e gradativo, onde vai delicadamente abandonando seus medos e inibições, aqueles que foram modelados por experiências  da infância em que não pode ser vista nem ouvida, onde o sentir-se amada como merecia precisou passar por uma reconstrução análoga a um quebra-cabeças de registros esparsos de pedaços de cenas, imagens e falas, que foram sendo pouco a pouco resignificados pelo impacto afetivo das novas relações que foram surgindo em sua vida. Descobre enfim que o amor pode ser compartilhado e não apenas vivido de maneira solitária, traçando uma trilha de buscas, encontros e descobertas.

 

 

Catarina Rabello
Psicóloga CRP 30103/06
Psicanalista membro efetivo do Departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Terapeuta de Casais, Famílias, Adolescentes e Adultos

Consultório São Paulo-SP
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