Um dos principais ideais de relacionamento que tendemos a alimentar, encontra-se profunda e inconscientemente associado ao ideal infantil de perfeição. Naturalmente, a meta de perfeição no relacionamento amoroso produz um dilema: Por quê o meu parceiro não entende o que eu preciso e não se esforça em preencher as minhas lacunas de afeto, intimidade, sexo, romantismo, compreensão e aceitação absolutas? Quando um casal busca uma terapia, pode ser compelido por diversas motivações individuais, desde provar para o terapeuta que as suas teorias e explicações a respeito do parceiro são as mais corretas, até buscar uma parceria com o terapeuta para reafirmar ao parceiro que ele funciona como a única fonte dos conflitos em comum. Na minha longa experiência com terapia de casais, uma das afirmações mais comuns que tenho escutado logo na primeira entrevista refere-se a uma grandiosa descoberta dos casais em crise: “Descobrimos o quanto somos diferentes!!” Uau!! O que esta afirmação poderia nos revelar em um primeiro momento? Haveria uma fantasia, uma ilusão, um desejo, ou um ideal de que, em um relacionamento, os parceiros pudessem se entender tão completamente e tão perfeitamente, que nada pudesse quebrar o sonho de uma harmonia perfeita e indestrutível, ideal suavemente configurado no breve e fugaz momento da paixão? O sonho do amor perfeito começa a se desfigurar frente a subsequentes tentativas de resgatar o que fora perdido no contato com o lado desconhecido de si mesmo e do outro, nas diversas maneiras de se confrontarem com as suas diferenças individuais. O que poderia ser um incentivo para uma relação mais criativa transforma-se agora em rigidez, repetição e afastamento progressivo.
A ficção de um ideal de perfeição surge desde a mais tenra infância, no processo de identificação com as figuras materna e paterna, na fase da estruturação do psiquismo, porém, ela se mantém inconsciente e tende a se manifestar mais eficientemente quando o sujeito se depara com uma profunda frustração. A vida a dois eventualmente leva o casal a se deparar com frustrações sequenciadas ao longo de uma jornada, e a nossa cultura coloca à disposição dos casais inúmeras tecnologias, farmacologias e terapias que propõem soluções práticas e rápidas para superar tais frustrações. Entretanto, as opções de tratamento rápido nada mais produzem do que uma intensificação da frustração e uma desesperança no relacionamento e em si próprio, por não acessarem as questões subjetivas, os mecanismos e limites construídos na relação, sua história e seus traumas.
Todo o contexto de uma terapia conjugal torna-se profundamente desafiador quando o terapeuta propõe uma revisão das interpretações que invadem o dia a dia de um casal, aquelas que se cristalizaram ao longo do relacionamento gerando profundas barreiras não somente ao nível da comunicação e do encontro sexual, mas de uma intimidade que foi se tornando cada vez mais pobre e rara. Seus efeitos são especialmente desastrosos e podem desencadear doenças psicossomáticas, doenças psíquicas como depressões, queda na autoestima, na autoimagem, na autoconfiança e uma total descrença em si e no outro.
Muitos traumas podem estar associados à dificuldade de uma entrega profunda ao outro, traumas que marcaram o sujeito na sua infância ou adolescência, que o levaram a desenvolver posturas extremamente defendidas, como se estivesse sempre vulnerável a um ataque iminente, tendo que lutar contra esta vulnerabilidade utilizando mecanismos de defesa nada eficazes para o momento atual, como negação, racionalização, e até mesmo padrões agressivos de reagir a qualquer estímulo que venha do outro. Um contexto como este tende a eliminar a possibilidade de prazer, de intimidade, de conexão emocional, de bom humor e de alegria, elementos necessários e essenciais para sustentar o equilíbrio entre um relacionamento saudável e suas crises eventuais.
Vivências difíceis de lidar como infidelidade, sentimento de abandono, sentimentos de solidão, ausência de diálogo e falta de conexão física e emocional, podem ser extremamente ameaçadoras para a saúde individual e do casal. Estas vivências evidenciam que o casal chegou a um limite difícil de ultrapassar, e a tentativa de manterem a relação em um nível razoavelmente sustentável, exige, ainda que haja uma forte resistência, uma postura corajosa de ambos para enxergarem, aceitarem e providenciarem uma ajuda terapêutica. A terapia de casal pode funcionar como um espelho, em que cada um se surpreende ao enxergar algo de si que não era bem percebido anteriormente e que estaria inevitavelmente associado às dinâmicas e padrões reacionais que se tornaram automáticos, repetitivos e ineficazes no processo de feed-back contínuo, cujo padrão principal de interação estaria baseado na “ação e reação”. Orientar e ajudar a analisar e repensar sobre toda esta complexidade das dinâmicas conjugais é função primordial do psicanalista e terapeuta de casais.
Catarina Rabello
Psicóloga Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Psicoterapeuta de Casais
Email: contato@psicatarina.com