Filme Honeyland: Diversidade e Adversidades/ Psicóloga Catarina Rabello

 

O documentário Honeyland indicado para o Oscar 2020 testemunha de maneira lindíssima a história da protagonista principal Hatidze, criadora de abelhas em um lugar distante da Macedônia. O filme revela que é possível mantermos relações mais sustentáveis com a natureza, se soubermos respeitar as suas regras, o seu tempo e a sua lógica. Em meio a um debate ligado à crise das relações do homem com os ecossistemas do planeta e à necessidade de nos conscientizarmos sobre a necessidade de criarmos relações mais sustentáveis, foi solicitado aos diretores por órgãos do governo da Macedônia um filme que documentasse e permitisse um contato muito próximo da população a realidades humanas distantes capazes de conviver e ter acesso aos recursos naturais de maneira harmoniosa, mostrando que é possível manter a exploração de recursos naturais obedecendo a conservação e a sustentabilidade das fontes da biodiversidade regional.

Numa região distante ao norte da Macedônia, onde vivem apenas alguns pequenos povoados, foram encontradas, em uma região de onde todos os habitantes se retiraram, apenas duas habitantes remanescentes, Hatidze de 56 anos e sua mãe Nazife, idosa, doente e impossibilitada de sair da cama. Hatidze é uma cuidadora primorosa em meio a tanta escassez e múltiplas dificuldades de sobrevivência. Sendo a filha mais velha, Hatidze assumiu a incumbência de cuidar dos pais idosos obedecendo à regra familiar e cultural de seu povo e não pode se retirar do povoado junto com seus irmãos. Ela cuida de sua mãe doente, cega de um olho e com dificuldade de locomoção e também cuida das abelhas de onde provê o alimento e sustento para ela e sua mãe. No local onde vivem não há energia elétrica, água encanada, nem rodovia de acesso. A rodovia mais próxima encontra-se a 18 km de distância e Hatidze percorre esta distância a pé até chegar ao povoado mais próximo, onde eventualmente leva os seus potes de mel para vender.

As interações de Hatidze com sua mãe são muito peculiares, porque apesar de uma certa dureza aparente nas interações verbais, percebe-se uma doçura nos cuidados que oferece à mãe, expressando ao mesmo tempo uma aceitação de seu destino e uma enorme capacidade de resiliência frente às dificuldades da vida dura que as duas enfrentam naquele lugar.  Ao longo do filme, aos poucos vamos entrando no mundo de Hatidze, conhecendo-a nas suas maneiras afetivas de interagir com a mãe, com os bichos de estimação e com o meio ambiente, apropriando-nos do conhecimento que ela detém sobre a criação de abelhas, com tanto envolvimento, que passamos a esquecer que se trata de um documentário, e de repente nos encontramos como se estivéssemos diante de uma ficção, assistindo ao desenrolar de uma história com início, meio e fim.

No trato com as abelhas, Hatidze nos toca profundamente com seu gesto cuidadoso e de interação perfeita, estabelecendo uma espécie de conversa com as abelhas, entoando uma espécie de canto para chamá-las, e  sempre que vai extrair o mel das colmeias, repete uma frase que emite quase como um mantra, numa espécie de diálogo entre ela e as abelhas,  com este enunciado extremamente marcante:

“Metade pra você, metade pra mim”

Embora Hatidze não tenha tido a oportunidade de estudar, ela aprendeu os segredos da criação das abelhas, e enquanto pode cuidar solitariamente das suas colmeias, suas interações com a natureza eram harmoniosas e totalmente sustentáveis. Sabia que não podia extrair todo o mel das colmeias porque as abelhas iriam precisar do alimento para se nutrirem em dias difíceis de inverno rigoroso, então dividia igualmente o volume de mel disponível, e assim conseguia manter vivas as colmeias:

“Metade pra você, metade pra mim”

Ao aparecimento de uma família nômade e numerosa neste lugar onde moravam apenas ela e sua mãe,  Hatidze vê-se obrigada a enfrentar inúmeros conflitos com estes vizinhos que focavam na obtenção de um lucro rápido com a extração dos recursos daquela terra. Exploraram de maneira tão desordenada a região, que logo se instalou a desorganização do ecossistema como um todo. O equilíbrio ecológico se rompeu e enquanto os seus vizinhos exploravam os recursos naturais de uma maneira competitiva e desordenada, visando extrair o máximo com o mínimo de tempo, foi desencadeando-se a destruição das colmeias que Hatidze havia conseguido manter por tantos anos como fonte de alimento e sustento.  Frente ao desrespeito às regras fundamentais da natureza, nos deparamos com o impacto da perda dos recursos naturais que mantinham a sobrevivência de todos ali. O filme é tão real, que mais parece uma ficção, e incrivelmente passamos a fazer parte desta história como se ela tivesse sido criada para nos impactar com todo o conteúdo emocional que ela nos mobiliza. Enfim, um documentário de excelência máxima!

Muitas podem ser as associações de idéias, mas vou me permitir relatar no próximo post o quanto também fiquei impactada com o relato dos diretores sobre as dificuldades que eles tiveram durante as filmagens que duraram três anos e somaram 400 horas, o que permitiu com que este documentário registrasse um ciclo completo de vida, ou melhor, vários momentos e ciclos de vida puderam ser observados, analisados e editados para compor a imagem de que é possível recuperar o equilíbrio quando nos colocamos de maneira humilde frente aos limites do que é mais natural.

 

 

Catarina Rabello
Psicóloga  Crp 30103/06
Psicoterapeuta de Casais
Psicanalista membro efetivo do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

E-mail: contato@psicatarina.com 

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